quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O Lateral



O Lateral
Márcio Chacon


O dia está abafado, quente e o sol cada vez mais assassino. Meu preparador físico continua puxando o ritmo da fila de maneira acelerada. Não precisava estar fritando e correndo em volta do gramado, mas é isso o que ganho por reclamar a reserva em público. Virei a maçã podre do grupo e agora meu castigo é um maldito sol quente.

Eu sou o melhor lateral direito do país. Já fui um dos melhores do mundo. Já joguei na Europa e até na Ásia. Já joguei embaixo de neve onde quase não sentia mais o pé quando chutava a bola. Não preciso provar a mais ninguém do que sou capaz e não me arrependo de ter reclamado do técnico publicamente. Meu problema não é o técnico... Na verdade meu único problema no momento chama-se Marcão.

Nunca me viram com bons olhos quando iniciei minha carreira no futebol. Era baixo, tinha um porte franzino e era quieto demais nas concentrações. Essa desconfiança gerava uma cobrança maior e eu cresci com isso. Trabalhei minhas limitações e aprimorei minhas qualidades. Tenho uma impulsão acima da média, facilidade em jogar com os dois pés e meu cruzamento é cirúrgico. Quando cheguei aqui o nosso time era uma várzea completa. Em pouco tempo meus cruzamentos começaram a consagrar até mesmo o pior dos nossos atacantes. O time cresceu e eu me tornara uma referência pelo lado direito de ataque. Nesse meio tempo o nosso presidente fechara acordo com uma patrocinadora que estava disposta a despejar dinheiro nos cofres do clube. Muitos jogadores de seleção foram contratados e houve apenas um caso isolado de um jogador vindo do interior do Estado como aposta: Marcão. Não quero desmerecer nenhum jogador do interior... Muitas apostas podem dar certo, mas ele não demonstrou isso no início. Marcão é um alemão alto, magro e de fala mansa. Muitas vezes é engraçado falar com ele... Sua voz não condiz com seu porte físico. Sem falar que é um ignorante total. Lembro certa vez que o nosso goleiro Nei contou uma história envolvendo fantasmas no hotel em que estávamos hospedados... Isso foi o suficiente para Marcão não dormir naquela noite e quase não embarcar mais nas outras viagens. Esse era o Marcão. Um alemão com quase dois metros de altura, mas burro feito uma porta. Muitos de nós achava que ele não teria muitas chances no grupo.

O tempo foi passando e fui novamente convocado para a seleção. Com a minha ausência do time em virtude da convocação e da séria lesão do meu reserva imediato aconteceu o ingresso de Marcão no time. O que muitos podem explicar como sorte ou destino eu vejo como minha desgraça profissional. Foi preciso três jogos para aquele alemão burro arrasar em campo. Cheguei a acompanhar um jogo dele pela televisão. Marcão era realmente um fenômeno. Era uma besta taticamente, pois não entendia nada que o nosso técnico falava. Atacava nas horas que era preciso defender e muitas vezes se metia dentro da área junto com os nossos atacantes. O único foco dele durante a partida era o gol. Talvez sua única qualidade fosse essa, mas o suficiente para conquistar a admiração da torcida e da imprensa. Quando aquela besta pegava a bola era quase impossível desarmá-lo. Era preciso três e até quatro marcadores para tentar roubar a bola dele.

Quando retornei da seleção Marcão havia se tornado o principal jogador do time e a revelação do momento. Sorte ou destino para a besta e a desgraça e a reserva para mim. Passaram-se semanas, meses e quase não jogava mais no time. Foi então que ontem procurei a imprensa e reclamei uma nova chance ou uma rescisão de contrato. O que consegui foi inúmeras corridas em volta deste sol quente como punição. Voltas e mais voltas num ritmo contínuo de um preparador físico arrogante.

Em alguns minutos tudo muda. O preparador interrompe a corrida. Escutam-se alguns gritos vindos do campo. Os médicos saem correndo em direção a Marcão que rola no gramado gritando de dor e vomitando sangue. Nosso técnico assiste tudo em silêncio... Acompanha aquele alemão agonizando até o vestiário e em seguida caminha em minha direção. Ele me entrega o colete do time titular sem dizer nada... Nem precisa. O que muitos podem achar como destino ou desgraça da besta eu vejo como sorte e 50 mil muito bem pagos para um cozinheiro endividado ter caprichado no almoço de Marcão.

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