São quase quatro horas da manhã e não consigo dormir. A minha ansiedade e a alta temperatura incomodam tanto que a forte medicação receitada não funciona.
Fico com vontade de ligar para
Raquel e avisá-la que amanhã vou conseguir a viagem, mas ao mesmo tempo iria
preocupá-la à toa... Quem telefona para alguém numa hora dessas? Devia relaxar
e tentar dormir, mas está absurdamente quente.
O futuro é assim: quente e abafado.
A bala alojada na minha cabeça incomoda... Parece machucar meu cérebro toda vez
que deito sobre o travesseiro.
Estamos no ano de 2094 e ele é incrivelmente
quente. O céu ficou vermelho a quase cinco décadas, as chuvas são raras e a
marginalização é gigantesca. Anos atrás fui baleado na cabeça ao reagir durante
um assalto e, desde então, tenho terríveis enxaquecas durante a noite. Logo
após este trágico acidente realizei a inscrição para concorrer à viagem no
tempo. O projeto da viagem iniciou apenas para fins científicos e os únicos que
realizavam a viagem eram androides. Com
o passar do tempo e após diversas discussões os humanos também começaram a
realizar a viagem pelo tempo obedecendo a seguinte regra: humanos poderiam
viajar para o passado e androides viajariam para o futuro. Mesmo com uma incrível
tecnologia nas nossas mãos ainda existia muito receio em se mandar pessoas para
um futuro ainda incerto e desconhecido e, neste caso, androides seriam muito
mais capacitados a sobreviver num possível ambiente hostil.
No dia 3 de fevereiro de 2093 houve o anúncio de
que as viagens ao passado estavam sendo permitidas para todos os humanos que
pudessem arcar com o alto preço ou em casos de doenças ou riscos à saúde. O
comunicado foi transmitido pelo presidente dos Grandes Estados Unidos da
América (a décadas atrás todos os países da América do Sul, do Norte e América Central se unificaram a um pedido do atual presidente americano junto a ONU).
Mesmo se pagando ou tendo a
aprovação do governo para a tal viagem ainda seria necessário seguir certas instruções.
Não pode e nunca haveria a possiblidade de mudanças radicais em eventos
ocorridos no passado... Pensaria como exemplo num possível assassinato de Hitler
ainda criança ou ainda termos a chance de viajar para uma época bem distante e salvarmos
um homem de ser torturado e crucificado na cruz por assassinos judeus. Eventos
ou ações grandes geram reações ainda maiores (segundo a opinião dos nossos
grandes líderes mundiais) e, em razão disso, tais eventos eram condenados pelas
autoridades.
Para cada caso seria registrado um
número de protocolo, cada número indicaria o evento ou situação a ser corrigida
ou evitada. Acidentes envolvendo atropelamentos, brigas e assaltos começaram a
aparecer em massa nos protocolos abertos e o meu também se enquadrava nessa
situação.
Não demorou muito para me retornarem
com a aprovação para a viagem. A felicidade de muitos em receberem tal
documento era um alívio pra mim. Era a chance de voltar no tempo e evitar um
assalto e, por consequência, uma bala presa na cabeça para o resto da vida.
Uma cápsula alojada no
crânio realmente incomoda. Dá uma sensação de estar solta e passeando pelo meu corpo. Levanto da cama e vou
até a cozinha. Pego uma garrafa de uísque e encho o copo até derramá-lo pela
mesa. A bala rasga meu cérebro toda vez olho para baixo. Bebo aquele
uísque devagar. Aquele líquido vai queimando minha garganta e, por breves
segundos, minha cabeça pára de doer. Sei que a bebida é um alívio temporário...
A solução definitiva virá apenas depois da viagem.
Vou até a janela e observo as ruas
silenciosas e vazias. O toque de recolher é feito às 20:00 e quando enxergamos
algum vulto na ruas depois desse horário ou é um assaltante ou um androide
fazendo a ronda.
Confiro o relógio na parede: são 4:47
da manhã. Penso em assistir algo na TV, mas já faz muito tempo que não passa
algo que presta na programação aberta. Grandes empresas farmacêuticas e redes
de fast-food compraram praticamente todos os canais abertos e agora somos
obrigados a assistir comerciais ridículos o dia inteiro ou pagar para se obter
o download de um filme ou programa (os preços variam pelo tempo de duração...
Gênero e classificação etária são irrelevantes).
O futuro é realmente quente. A própria
tecnologia nos castigou por termos ferrado com o planeta e agora precisamos
pagar caro para termos algum tipo de lazer (inclusive sexo seguro).
Cato meu antigo violão escondido
debaixo da cama e tento arranhar alguns blues antigos, mas a bala volta a
rasgar minha cabeça. Vou novamente até a cozinha e termino com o uísque que
havia ficado na garrafa.
Decido tomar um banho e iniciar os
preparativos para a viagem ao passado. Assim que saio do banheiro pego o
celular e mando uma mensagem para Raquel.
A bala não incomoda mais... A medicação e aquele uísque barato começaram a fazer efeito juntos. Vou
até a janela do quarto esperando uma resposta no celular. Já está amanhecendo e muito em breve estarei de volta ao passado. Tento ver algum rosto conhecido pela janela,
mas ainda não há pessoas vagando na rua. Apenas um sol vermelho ensanguentando
uma cidade que acorda.
Marcio Chacon
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