domingo, 10 de maio de 2015

O Casal - Parte Final: Cabaret Molotov

"Lembra quando começamos a namorar? Prometemos não esconder nada um do outro, mas
isso não era necessário, nossa comunicação sempre se deu através de uma espécie de
telepatia. Mas enlouquecemos, e era para ser assim mesmo, só não sei em que dado
momento nós saímos do mundo da razão. Tudo que solicitei que tu fizesse foram
ordens que recebi, sem contestar; mas precisamos pôr um fim nisso. Não somos mais
nós mesmos, estamos sob estado de sítio, não temos controle sobre nossas vidas.
Morremos há muito tempo atrás e não faço a mínima idéia de quem ou o quê está no
controle agora. Tenho raros estados de lucidez. Mas chega, isso é preciso, é a
única saída, então eu peço que faça o seguinte:
 Quando anoitecer, pegue sua Magnun 44, vá até o Cabaret Molotov, chame a atenção
de todos e dê um tiro na própria cabeça. Não hesite.

 Ana".

Ele bebia tranquilamente um mocaccino numa lancheria distante do bar onde
assassinara a garçonete. Teria ele estuprado a probre ruiva? Já não tinha certeza
de mais nada, e tampouco se importava. Ana realmente tinha razão, não havia outra
saída. Lembrou-se de que a arma estava no porta-luvas, avistara-a quando encontrou
o 1º bilhete de sua falecida esposa.
 De repente, sua visão fica totalmente escura, escuridão esta acompanhada de um
zumbido em seus ouvidos.
 Acordou dentro do carro, já era noite. O acendedor de cigarros na sua língua
deixou-o mais desperto.
 - Melhor que cocaína - disse consigo mesmo.
 O smog tomava conta daquela cidade úmida e suja, prostitutas berravam ,
endoidecidas e fissuradas. Junkies em meio a ratos e lixeiras falavam de Glória e
Redenção.
 Ele teve vontade de matar a todos e , inclusive, sentia-se parte daquilo, então
carrega o tambor do revólver e parte para o Cabaret Molotov.
 - Que vai ser, hein, meu chapa?
 - Bacanora.
 - Veja bem...o senhor sabe...esta bebida é proibida por aqui...
 - Esta pocilga toda é proibida. Veja.
 Um sujeitinho de bigode e chapéu-coco tocava um vaudeville no piano, enquanto
executivos gordos e ensebados babavam em cima das moças. A decoração era inspirada
nos anos 20, e os frequentadores, inspirados na idade das cavernas.
 - Traga minha Bacanora, não quero que seus miolos conheçam a potência de uma
Magnum 44, como esta.
 - Tá bom, tá bom. Bacanora saindo.
 - ...
 - Pronto. Taí. Ei, ei, ei, não bebe tudo assim não, isso é lava vulcânica, cara!
Ai, meu deus, vai dar merda...
 - Lamento muito não poder levá-los comigo - grita ele, subindo no piano -, estamos
todos no mesmo barco, e este barco já afundou na bosta há um bom tempo. Não há
sobreviventes nesse mundo!

 E rapidamente, ele atira, não em sua têmpora, mas logo acima de sua orelha
direita. Em meio à toda aquela correria, ele sequer sente seu corpo cair. O pouco
que sobra de sua cabeça fica de lado, e um filme muito ruim se passa em seu olho,
além do sangue. A cena vai ficando cada vez mais vermelha, e num último suspiro de
vida, ele se recorda de todos os crimes cometidos no passado e sente até mesmo uma
compaixão por aqueles pobres diabos.
 Só um pouco.

Escrito por Júlio Freitas (10/05/2015)










O Casal - Parte 3: Caddy, a garçonete

       Após algumas horas rodando pela cidade, ele pára num acostamento, sua mulher sabia que ele era dado à lapsos de memória, e por isso escreveu num papel que estava no porta-luvas uma lista com 2 coisas a serem executadas após o estrangulamento:
       1º: Páre em um acostamento distante da cidade, próximo à ponte, retire meu corpo do carro, passe batom em meus lábios e jogue-me no rio;
       Atirá-la na água foi fácil, o difícil foi a parte do batom, ele teve que cortar um pedaço da língua da sua mulher com seu canivete suíço, já que aquela não parava dentro da boca desta. Feito isto, ele entra no carro, acende um cigarro e risca o 1º item da folha. o 2º dizia o seguinte:
      "Vá até o bar 'Warm Beer and Cold Women' e faça sexo no banheiro com Caddy, a garçonete. Da última vez que fomos lá ela me confessou que queria te dar o rabo. Goze dentro dela, não se preocupe com isso, nem com o meu corpo boiando no rio. Eu já cuidei de tudo. Caddy está com a 3ª tarefa".
     Assim que termina o cigarro, ele dirige até o local, era perto do meio dia mas o frio continuava intenso, e estava ficando nublado. Ele estivera naquele lugar há 2 semanas com sua mulher, nunca gostou dali, exceto pela  jukebox. Sentou-se ao lado da janela, os assentos eram de um couro vermelho acolchoado, unidos às mesas de madeira. Ao avistar a garçonete, pede uma dose de vodka e assim que ela retorna com a bebida, ele diz:
     - Então...Caddy, vou ser o mais direto possível, - bebe tudo num gole só- eu tenho um puta tesão por ti e gostaria de te enrabar, ali no banheiro.
    - Como assim? - pergunta ela, fingindo estar surpresa.
    - Ah qual é? Vamos ali, eu sinto que tu também quer, pelo menos é o que os teus olhos me dizem agora.
 Ela sorri com o canto da boca e então fala:
    - Entre na última casinha do banheiro feminino daqui a 5 minutos, também tenho um envelope teu.
    Passado este tempo, ele vai até lá, certificando-se de que ninguém o estava cuidando. Caddy realmente era uma ruiva muito gostosa, e um tanto maluca; sem muita demora, eles partem para a ação, sentados na privada; ela não tirara a saia e nem a malha preta, somente a calcinha. Ao final da trepada, ela lhe dá um envelope e o beija. Durante o beijo, ele começa a sentir novamente aquele cheiro de sangue, e as vozes lhe diziam: "quebre a cabeça dela na borda da privada", aquilo era mais forte que ele, não era algo questionável e sim, uma ordem.
    - Caddy?
    - Hum?
    - Prometo que não vai doer, tá?
    - Sobre o que tu está faland...
    Antes que ela pudesse terminar, ele a pega pelos cabelos e estava tudo feito. Um som seco e mais nada. Saiu do bar sem olhar para os lados e nem para trás, saiu inclusive sem pagar sua bebida. Neste momento, uma poça de sangue se formava ao redor do corpo da garçonete. Tocava Tom Waits na  jukebox. Tocava Tom Waits na  jukebox.
 
     Assoviava.
 






Escrito por Júlio Freitas (10/05/2015)






















































O Casal - Parte 1: Sangue

       Estavam casados há 17 anos, não tinham filhos e moravam numa casa que ela herdara do pai. Ele era redator de um jornal local e ela era dona de uma loja de lingerie. Não se pode dizer que o relacionamento deles fosse normal, iam quase todos os fins de tarde sentar em um banco específico de uma praça, banco este onde se beijaram pela 1ª vez; era uma tentativa um tanto infantil de resgatarem uma visceralidade adolescente.
      Mas eles levavam isso muito à sério, degladiavam na cama e estupravam-se um ao outro, resultando em sangue e escoriações diversas, em situações que beiravam o canibalismo.
      Ele estava passando recentemente por problemas psiquiátricos, alegava que ouvia vozes que o mandavam fazer coisas, como dirigir na contramão a 180 Km/h, calçar os sapatos trocados e empurrar pessoas em
frente a carros que passavam, além da masturbação em público.
     Certa vez ao chegar em casa, encontra sua mulher num tubinho preto e botas de vinil.
     - Amor? - chama ela.
     - Hum?
     - Queria te pedir uma coisa...
     - Que é?
     Então ela se aproxima lentamente e cochicha algo em seu ouvido. Aquele era o dia do aniversário dela e a história deles estava prestes a tomar outro rumo, havia um incenso de ópio aceso, e assim que o mesmo se apaga, ele começa a sentir um cheiro, o mesmo cheiro que ele sentia antes de executar aqueles atos malucos: o de sangue.

Escrito por Júlio Freitas (10/05/2015)

O Casal - Parte 2: Monólogo

       - Talvez tu não precise disso, ou talvez precise mais do que imagina, mas a questão é: isso irá lhe dar uma plena satisfação, ou não passará de um desejo, um mero impulso? Sabe, querida, eu tentei ser sensato, mas tuas idéias estavam me apavorando, não conseguia dormir direito nem trabalhar, tomava porre de
whiskey toda noite pra esquecer das tuas loucuras.
 Eu sei, fomos felizes e tals, mas bem que a gente poderia mudar o nosso banco daquela praça, mendigos dormem ali, sabe, mijam e cagam também. Melhor, poderíamos mudar de praça, ou de país, ou simplesmente ficar em casa, tu me conhece, não gosto de lugares públicos, as pessoas me dão ânsia de vômito, principalmente os membros da tua família. Não me force a isto, a gente pode tentar mil coisas ainda, ouviu? Ana...? Ana...? Ana!
       Ele continuava apertando firmemente o pescoço dela, com ambas as mãos, conforme ela havia pedido; e então ele cai na gargalhada, perante a língua roxa e os olhos esbugalhados de sua esposa. Antes de pôr o corpo no porta-malas do carro, ele nota uma correspondência na caixa:
      - Mas que diabos, vão cortar a TV a cabo de novo!
O sol estava nascendo, com vários feixes de luz se espalhando para todos os lados, e aos poucos ilumina toda a rua. No vidro traseiro do carro que já ia longe, percebe-se algo escrito:
"LAVE-ME".
Escrito por Júlio Freitas (10/05/2015)