quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Desfecho



            

Desfecho
Márcio Chacon



             Seu coração batia cada vez mais rápido, suas mãos tremiam e as lágrimas dos seus olhos se misturavam com o sangue do seu rosto. Estava paralisada e totalmente à mercê daquela criatura. Como ia adivinhar que seu ente mais querido iria se transformar numa espécie de lobisomem?

            Aquele monstro faminto de olhos grandes e dentes afiados parecia ter a hipnotizado, pois a infeliz moça não conseguia se mexer, não conseguia fugir.

            Foi quando a fera chegou bem perto e a puxou pelo braço. Um puxão violento o suficiente para sentir um osso do seu braço romper e fazer aquela linda jovem gritar. Mas era em vão. Já se faziam meses que quase ninguém passava por aquela região, pois quase todos os animais já haviam sido mortos pelos caçadores.

            O feroz monstro aproximou seu grande focinho até o rosto da jovem. Seu perfume se misturava com seu sangue e isso ia aumentando cada vez mais sua fome por carne humana.


            A fera não hesitou e mordeu o pescoço de sua vítima. A triste moça teve poucos segundos de uma dor absurda até sentir uma incrível sensação de sono. Tentou juntar forças e suplicar pelo pouco de vida que ainda lhe restava. Murmurou poucas palavras do tipo, ser uma pessoa especial e que muitas gerações precisavam que ela vivesse naquele momento. Mas foi tudo em vão. A criatura continuava a morder seu pescoço de uma maneira violenta e cruel. Somente foi soltá-lá quando percebeu que a garota já estava morta.

            O monstro ficou alguns segundos admirando o belo corpo de sua vítima caída diante dele. O sangue derramado combinava com a capa que aquela garota usava. Talvez não precisasse realmente tê-la matado, mas sua fome era gigantesca. E foi então que a vovozinha, transformada em Lobo-Mau, comeu a Chapeuzinho-Vermelho.



terça-feira, 11 de setembro de 2012

Os Maus




Os Maus
Márcio Chacon

Renato conferiu o relógio mais uma vez antes de começar a guardar o material em sua mochila. O caderno foi guardado do mesmo jeito que fora tirado, pois não havia sido usado durante toda a aula de matemática. A conversa com Trindade realmente o havia afetado bastante.

Novas gangues estavam surgindo e com a prisão de Alemão havia a necessidade de um novo líder. Quando recebeu o telefonema de Trindade sabia que iria ser testado a partir daquele momento.

A gangue deles era composta por jovens de 13 no máximo 17 anos. A exceção era Trindade que completara 19 anos e até já havia sido preso por roubo. Ele poderia facilmente reunir os demais membros da gangue e se eleger como o novo chefe, mas preferiu testar Renato depois da aula.

O local escolhido foi um fliperama a poucas quadras da escola. Após a prisão de Alemão muitos garotos de uma gangue rival começaram a frequentar o lugar diariamente... Prática considerada proibida, pois cada gangue tem o seu local de encontro e isso vinha sendo respeitado quando Alemão ainda estava por perto.

Renato chegou ao fliperama poucos minutos após o término da aula.  Viu Trindade do outro lado da rua, mas não esperou por ele e entrou sozinho no estabelecimento. Esbarrou propositalmente num garoto da gangue rival e foi em direção às máquinas bem ao fundo do fliper. Antes de chegar até elas percebeu que fora seguido pelo mesmo garoto e seus amigos... Um confronto ali era inevitável.

Rapidamente e quase sem pensar, Renato tira a faca, que estava escondida embaixo de sua camisa, amarrada por um barbante. Num movimento brusco e certeiro, aloja a faca no braço do garoto desafiado, perto do bíceps. Sentiu a pele romper-se e a faca penetrar as carnes macias e quentes de seu adversário. Seguiu-se um silêncio, e quando deu por si, estava sendo observado por todos no fliperama. O menino que fora atacado, após o susto, começou a chorar copiosamente. Renato foi até a rua e procurou os olhos de Trindade, que o observava de maneira serena, quase como se ele esperasse por aquilo. Finalmente Renato havia mostrado do que era capaz. Então saiu correndo, esquecendo Trindade, a faca, e tudo mais para trás. Sentia-se quente, ao mesmo tempo com um frio no estômago. Sentia vontade de correr até o outro lado da cidade e voltar, tamanha sua energia naquele momento. E correu muito, andou mais um tanto, só voltando para casa ao anoitecer.

No outro dia, Trindade veio lhe procurar para lhe dizer algo que já sabia: Ele era o novo líder.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Dança Fúnebre




Dança Fúnebre
Cristiano Silva



Pobre do Arlequim

Que vive sem sua concubina

Alegra a todos sem poder se alegrar

Uma folha branca suja com nanquim.


E na alegre distração teatral

Seu sorriso anti-divinal

A alegria forçada perante a guilhotina

Nesta dança fúnebre.


Sua cabeça rola, feliz Arlequim

Alegria misturada com tristeza

Uma cabeça posta em uma bandeja

Um sorriso sarcástico a nos mirar.


A sensação estranha

De que em algum momento

Talvez em nossos sonhos

Nosso lunático amigo.


Nosso Arlequim

Venha com um sorriso sádico

E sua lâmina nos visitar.

-o-


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Super-Herói



Super-Herói 
Márcio Chacon



Já era tarde, mas a festa prosseguia bastante animada. Ela era a rainha da noite. Sua fantasia de Mulher Maravilha brilhava de longe e chamava a atenção de todos. Ela sabia que o foco de atenção estava todo canalizado nela. Seu corpo atlético era desejo de muitos naquela boate.
Nossa cobiçada heroína foi passeando lentamente até o bar onde pediu uma bebida.  Um Coringa apareceu totalmente embriagado e sentou ao seu lado. Sua pintura no rosto estava totalmente borrada. O suor havia destruído por completo sua demorada maquiagem e a cerveja já afetava seu modo de andar. Mesmo num estado lastimável aquele homem se ofereceu para pagar um drinque. Nossa Mulher Maravilha segurou o riso e aceitou que ele arcasse com a despesa. Assim que o barman chegou com os drinques ela pegou seu copo e deixou o pobre coitado falando sozinho.
Saiu do bar e foi desfilando com o copo lentamente pela pista de dança. Sua roupa brilhava tanto como as luzes daquela boate. Achou uma mesa vaga e sentou depois que acomodou o copo gelado ao lado do celular. Fitou alguns rostos, mas não achou nenhum interessante.
Um mascarado usando uma fantasia amarela apareceu e perguntou se gostaria de dançar. Nossa bela heroína chegou a pensar por alguns segundos tentando descobrir que personagem seria aquele, mas respondeu algo mais apropriado para aquele momento... Uma leve mentira:
- Não posso. Meu namorado está vindo.
Isso bastou para o mascarado sumir na multidão. Ela conferiu o celular mais uma vez... Recebia mensagens a todo instante.
No momento que estava deletando alguns recados outro herói apareceu. Ele era alto, magro e tinha olhos tão lindos quanto os dela. Usava uma fantasia de Super-Homem e tinha uma tatuagem tribal muito bonita na sua mão direita. Ele era bastante interessante e nossa heroína adorou sua abordagem. Aquele belo herói lhe deu uma rosa e pediu permissão para sentar ao seu lado. Cochichou no seu ouvido uma cantada meio infantil, mas que saiu até bonitinha para o momento. Algo do tipo ser especial, ser a escolhida, ser sua rainha para voarem juntos e conquistarem o universo. Aquilo já havia sido suficiente para trocarem alguns beijos.
Não havia mais necessidade para uma conversa até porque a música alta atrapalhava o diálogo e o entendimento das palavras que aquele Super-Homem dizia. Entre um beijo e outro veio o convite para saírem dali.
Ele sugeriu irem ao seu apartamento que ficava no décimo andar do prédio ao lado. A noite estava perfeita e sua sacada tinha uma vista linda.
Ela abraçou aquele Super-Homem e ambos saíram juntos da boate até o prédio do outro lado da rua.
Rapidamente entraram num prédio deserto e pegaram o elevador até o décimo andar. Dentro do elevador nossa heroína conferiu mais uma vez os olhos do seu Super-Homem. Eles já não brilhavam mais como antes. Talvez por causa da iluminação da boate ou talvez pelo efeito temporário de alguma droga que ele tivesse usando, mas quem se importaria com isso? Ele era lindo.
Assim que entrou no apartamento nossa Mulher Maravilha percebeu que não havia móveis nele. Havia apenas algumas caixas de papelão ainda lacradas. Rapidamente presumiu que aquele homem estaria se mudando.
Ele então abriu o vidro de sua sacada e a chamou para admirar a vista. Ela imediatamente foi até ele e enxergou uma noite linda, fria, silenciosa e muito bem acompanhada de uma lua que parecia ter sido desenhada para eles. Nosso herói tocou seu pescoço, acariciou seus cabelos e disse a coisa mais insana que alguém poderia dizer naquele momento:
- Voe.
Nossa Mulher Maravilha não entendeu bem a ordem, mas não disse nada. Apenas fez uma cara de alguém boiando na conversa.
Aquele homem mudou... Enfureceu-se. Puxou uma faca afiada do bolso, pressionou sobre seu rosto e gritou:
- Eu quero que você voe, Mulher Maravilha!
- A dor da lâmina entrando no seu rosto era forte e real. Aquilo era real. Não sabia o que fazer. Algumas lágrimas começaram a rolar sobre seu rosto e se misturar com o sangue provocado pela lâmina.
- O que você quer? Por que está fazendo isso?
- Eu sou o Super-Homem e você é minha rainha, mas para ter certeza eu preciso que voe pra mim.
A dor no seu rosto era gigantesca. Olhou para a rua, olhou para a boate... Ninguém ia escutar mesmo que gritasse. Além de estar longe a música da boate era muita alta e ninguém escutaria seu pedido por socorro. Segurou o choro e murmurou:
- Mas eu não sei voar.
- É claro que sabe. Você é a Mulher-Maravilha. Você é a minha rainha. Sabe quantas mulheres precisei matar para chegar neste momento? Muitas morreram no passado. Muitas foram reprovadas por mentirem. Não passavam de vagabundas usando a roupa da minha Mulher Maravilha... A sua roupa.
Neste exato momento nossa heroína percebeu que aquele homem era completamente louco e que tudo que falasse para ele seria em vão. Lentamente afastou a lâmina do seu rosto e subiu na pequena mureta da sacada. Olhou para baixo e simulou uma preparação de salto. Seu corpo tremia, seu rosto já estava totalmente pintado de sangue. Talvez no pior momento da sua vida também tenha surgido a melhor e mais absurda das idéias que já tivera:
- Eu não posso voar.
- Por que não?
- Eu sou sim a Mulher Maravilha, mas nunca voei. Assim como o Batman e o Robin. De todos os heróis que conheço o único que sabe voar é o Super-Homem.
O olhar daquele homem mudara. As palavras dela realmente haviam afetado sua mente insana. Ele estava em dúvidas. Pensou por breves segundos, jogou fora sua faca e disse:
- Então eu vou saltar.
Nossa heroína permanecera em silêncio. Sabia dentro dela que o havia vencido. Usara uma resposta maluca para derrotar um homem maluco.
Aquele homem subiu na mureta posicionando-se bem ao seu lado.
- Vou te provar que posso voar. Que eu sou o Super-Homem.
- A Mulher Maravilha sorriu... Não por acreditar naquela afirmação, mas pela certeza que estava salva daquele doido. Aquele desgraçado jamais sobreviveria com a queda. Sua felicidade era a morte daquele homem.
- Aquele Super-Homem olhou para a lua e esboçou um salto. Parou e voltou a olhar para nossa heroína. Seus olhos voltaram a brilhar como antes na boate. Ele sorriu e perguntou?
- Quer voar comigo? Eu te levo.
E antes dela dizer não ou dela pensar em fugir dali... Antes de qualquer reação, aquele homem a puxou pelos braços e saltou. E então ambos caíram.

Sólidos Pensamentos





Sólidos Pensamentos
Cristiano Silva



Eu em meu recanto mais pacato


Na ausência de um amor


Fico horas admirando a paisagem


Marcas dos dias que vão com minha paz.


Na chegada noturna

Sólidos pensamentos em temor

Um pesadelo me atormenta de passagem

Fico em transe imaginando uma viagem

E ao meu redor um novo mundo se faz.


Intolerante como a luz clara escura da lua

Que ilumina as sombras espectrais

Vultos aterrorizam em minha retina

Adrenalina, opio, morfina, loucura

Gritos súbitos do perigo de um monstro atroz.


Que aterroriza a todos

Na passagem para a realidade

Quando a umbra se desfaz

E volto à realidade.


Com as mãos manchadas de sangue

Pedaços expostos em todos lugares

A sensação da monstruosidade

Que habita no íntimo de cada ser.



terça-feira, 19 de junho de 2012

A Estagiária




A Estagiária
Márcio Chacon

        A sala estava lotada de gente. Os funcionários se espremiam nas paredes com seus pratos plásticos esperando uma fatia do tão disputado bolo de aniversário. O serviço iria ser paralisado por cerca de 30 minutos... Um intervalo irrelevante afinal era o aniversário do chefe. Homem bom, diga-se de passagem. Sujeito sério e de poucas palavras, mas dono de um coração grande. Tempos atrás vencera uma forte disputa contra homens que agora estavam ali alegres e o felicitando. Em poucos minutos a secretária ingressou na sala trazendo o bolo sendo seguida pela nova estagiária que trazia as bebidas. O chefe então fez um comentário sobre a roupa nova de sua secretária e gerou a risada de todos com exceção da compenetrada estagiária que enchia os copos dos convidados de maneira cirúrgica. Após o bolo estar todo nas mãos dos funcionários foi a vez da estagiária entrar em ação e servir suco e refrigerante a todos na sala... Em especial ao aniversariante do dia. Antes de saciar a sede aquele homem pensou em algo bacana para dizer a seus funcionários... Algo digno de um líder para seus subornados. Estava prestes a realizar um grande discurso quando sua secretária esbarrou sem querer nas suas costas fazendo-o derramar sua bebida em cima da pobre estagiária. Por alguns segundos todos ficaram sérios esperando o pedido de desculpas do seu chefe todo sem graça. Ele fez questão de ajudá-la a secar sua blusa e ainda brincou dizendo que iria aumentar o valor do seu salário para comprar roupas novas. Outras piadas foram surgindo e aos poucos o incidente foi passando despercebido. Todos na sala riam sem parar... Principalmente a precavida estagiária que havia guardado bastante veneno e teria muitas outras oportunidades para matar seu chefe.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Pesadelo



O Pesadelo
Nei Moreira


Acordei assustado com o vento frio que atravessava o quarto. Levantei para ir ao
banheiro quando vejo a janela do apartamento aberta.  Fui em sua direção para
fechá-la e pisei em algo gelado e viscoso. Observei que
cobria boa parte da sala e o sofá estava afastado da janela. Olhei em volta e
não reconhecia o lugar, os quadros, o sofá e os tapetas não pertenciam ao
meu apartamento. Curioso olho atrás do sofá e encontro alguém caído...  O que pisei era
sangue. Nisso um barulho no corredor chama a atenção. Alguém bate na porta e percebo
forçá-la para entrar. Escuto alguém dizer:
- Tenho a chave, não precisa arrombar.
Com a adrenalina tomando conta, os policiais entram no apartamento e me cercam. Não consigo falar nada, não consigo raciocinar. Não me lembro de nada da noite anterior, pois não me lembro de entrar naquele apartamento. O suor toma conta do rosto e começo a tremer de nervoso. Um policial me algema e me leva para fora do apartamento. Quando atravesso a porta o relógio desperta anunciando a hora de acordar. Ainda bem... Foi só um pesadelo.



sexta-feira, 27 de abril de 2012

Na Parada do Ônibus



Na Parada do Ônibus
Nei Moreira


Cheguei à parada, o ônibus demorava mais que o de costume, apareceu um vendedor de balas pedindo uma ajuda, cheguei a colocar a mão no bolso, porém lembrei que só tinha as moedas para voltar para casa. Distante uma menina se aproximava aparentando uns 12 ou 13 anos. Carregava umas dez ou doze garrafas de água de 5 litros vazias às costas, cantarolava e valseava ao som do vento cortante, observei melhor e vi que a camisa deveria ser da irmã menor e as calças eram de dois ou três números a mais, calçava um tênis que mal cabia nos pés, mas estava feliz, radiante, talvez por ter conseguido as garrafas, talvez por ir cedo para casa, mas estava eufórica.

O meu ônibus chegou, fui o primeiro a entrar, sentei à janela e observei novamente a menina cantarolando, feliz. O ônibus começou a se afastar e com a imagem da menina na mente divagando onde estará a minha inocência, a minha despreocupação, por onde andará a minha felicidade. Dormi.



quinta-feira, 26 de abril de 2012

O Paraguaio



O Paraguaio
Márcio Chacon


            Conferi o relógio pela quinta vez desde que entrei no carro. Eram quase seis da manhã. Sempre gostei de trabalhar sozinho... Somente em casos especiais precisei solicitar ajuda.
            Normalmente os alvos estão sozinhos ou acompanhados de uma pessoa no máximo. Hoje era o típico serviço que iria precisar de ajuda. Gomes não soube informar com precisão o número de pessoas presentes com o alvo, mas seriam em torno de quatro.
           Tive contato com o meu parceiro de serviço dois dias atrás e ficara preocupado com o que vira, pois o homem era bastante velho, mancava de uma perna e era de poucas palavras. O pouco que falava era para praticar um portunhol até certo ponto irritante. Seu nome era Pedro Vargas e havia fugido do Paraguai para fixar residência no sul do país a alguns anos atrás.
          Contudo a problemática da comunicação não era a causa da minha preocupação. O que me preocupava realmente era saber se poderia contar realmente com a ajuda dele para aquele serviço. Como aquele velho seria em ação? Que arma ele usaria? Seria capaz de ser rápido numa possível troca de tiro? Gomes também não me dera mais detalhes sobre o paraguaio... Apenas a certeza de que era o homem certo para me ajudar no serviço.
         Antes de conferir o relógio novamente alguém bate no vidro no carro. Abro a porta e comprimento meu novo colega:
        - Bom dia, Vargas.
        O paraguaio sorri, mas não diz nada. Senta com certa dificuldade. Ajeitar a perna dentro do carro parece ser uma tarefa dolorida... Quase impossível. Assim que ele consegue uma posição confortável dentro do veículo partimos em direção ao nosso alvo.
       Ficamos poucos minutos em silêncio. O paraguaio tira um maço de cigarros e começa a fitar meus olhos... Em seguida vem a pergunta:
       - Importa?
       - O quê?
       - Te importas se fumar no seu carro?
       - Claro que não.
       O lado bom daquela pergunta era o início de um diálogo durante o trajeto. Talvez descobrir como aquele homem trabalhava e, principalmente, se já havia feito algo parecido antes:
       - A quanto tempo atua nesse ramo?
       - Mucho tiempo.
       As palavras e o aspecto inofensivo daquele velho enchiam ainda mais minha cabeça de dúvidas. Como poderia um homem daqueles ser um matador? O que diabos ele poderia fazer quando chegássemos no local? Tentei ainda manter a conversa ativa e quem sabe obter mais alguma informação sobre meu parceiro.
         - O que Gomes te passou sobre nosso alvo?
         O velho deu uma longa tragada naquele cigarro fedorento e então respondeu:
         - Se trata de um banqueiro, correto?
        - Correto.
        - Sabe o que teremos que fazer quando chegarmos lá?
        - O procedimento de sempre. Você fará a abordagem inicial e eu cuidarei do resto.
        Conferi mais uma vez o relógio antes de estacionar o carro em frente a uma praça ainda deserta. Olhei ao redor e não havia ninguém... Consequentemente nenhuma testemunha. Voltei a dialogar com Vargas:
       - O alvo sairá da casa amarela e vai caminhar pela praça até a cafeteria. Provavelmente deverá estar acompanhado de no máximo três seguranças.
       O paraguaio dá uma longa tragada naquele cigarro fedorento e então responde:
      - Tranquilo.
       O cigarro e aquela calmaria começavam a me irritar, mas não poderia discutir com um parceiro antes do serviço. Não seria uma atitude profissional e também não teria muito tempo para brigar com aquele velho, pois nosso alvo acabara de sair de casa acompanhado de dois seguranças.
        Vargas imediatamente joga o cigarro fora e fala algo que jamais ouvira de parceiro algum:
       - Espere cinco minutos e deixe o motor ligado.
       - O quê?
      - Não precisamos esperar ele dar a volta na praça. São apenas dois seguranças... Eu cuido de tudo, hombre.
        Confesso que não sabia o que dizer naquela hora. Apenas o observo abrir a porta e sair do carro de uma maneira lenta, dolorida e resmungando algo do tipo:
      - Mierda de banco!
        Faço o que o paraguaio me pede... Deixo o carro ligado e fico a sua espera.
       Vargas começa a se aproximar do alvo que está sentado num banco da praça. Seus dois seguranças percebem a chegada de Vargas, mas não dão muito importância para aquele velho caminhando com certa dificuldade.
       Começo a entender o plano dele: Chegará mais perto de maneira inofensiva e provalvemente mate os seguranças primeiro para depois matar o banqueiro. Se esse era o plano parecia estar dando certo... Vargas se arrastava até a direção do alvo e aqueles homens não davam importância alguma para a sua presença.
        Aquilo poderia funcionar... Realmente daria certo até Vargas tropeçar e cair no chão. A queda é tão forte que solta seu maço de cigarros longe. Seu plano estava arruinado... Tudo estava perdido. Pensei em acelerar o carro e ir até eles, mas estava paralisado vendo aquela cena. Um dos seguranças foi tentar levantar Vargas enquanto o banqueiro juntava seu maço de cigarros. Quando o paraguaio já estava de pé o nosso alvo sorriu e lhe entregou seu cigarro. Foi então que aquele velho puxou um revólver pela manga e deu dois disparos tão rápidos que ouvi apenas um. Nosso alvo e um dos seguranças já estavam no chão. O outro segurança que o acudira tentou sacar sua arma e levou um tiro no rosto. Vargas dá alguns passos em direção ao banqueiro ferido e dá mais três disparos, recolhe seu cigarro e caminha lentamente até o carro.
         Não espero ele fechar a porta e acelero o veículo para sumir dali o mais rápido possível. O plano daquele velho funcionara. Sua aparência inofensiva serve apenas como disfarce para um diabo de saque rápido.
        Dirigimos cerca de trinta minutos até chegar a um estacionamento onde trocamos de veículo. Não conversamos durante o trajeto. O silêncio prevalece até voltarmos ao mesmo local onde buscara Vargas.
       Estaciono o veículo e confiro mais uma vez o relógio... São sete e meia da manhã.
      - O tempo voa.
     Vargas acende outro cigarro, abre a porta do carro e antes de descer diz:
     - Você é um pouco nervoso, mas é um bom parceiro.
    Sorrio e digo o mesmo para aquele velho que antes de descer briga novamente com o banco do carro. Lentamente ele desce do veículo e vai se arrastando pela rua até dobrar numa esquina e desaparecer.
     Ligo o carro e sigo o caminho de casa. Fico imaginando o dia de ter uma nova oportunidade de trabalhar com ele. Independente do cigarro fedorento e das poucas palavras eu estava realmente disposto a aprender mais com aquele homem que acabara de ganhar meu respeito e roubar minha alma.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O Lateral



O Lateral
Márcio Chacon


O dia está abafado, quente e o sol cada vez mais assassino. Meu preparador físico continua puxando o ritmo da fila de maneira acelerada. Não precisava estar fritando e correndo em volta do gramado, mas é isso o que ganho por reclamar a reserva em público. Virei a maçã podre do grupo e agora meu castigo é um maldito sol quente.

Eu sou o melhor lateral direito do país. Já fui um dos melhores do mundo. Já joguei na Europa e até na Ásia. Já joguei embaixo de neve onde quase não sentia mais o pé quando chutava a bola. Não preciso provar a mais ninguém do que sou capaz e não me arrependo de ter reclamado do técnico publicamente. Meu problema não é o técnico... Na verdade meu único problema no momento chama-se Marcão.

Nunca me viram com bons olhos quando iniciei minha carreira no futebol. Era baixo, tinha um porte franzino e era quieto demais nas concentrações. Essa desconfiança gerava uma cobrança maior e eu cresci com isso. Trabalhei minhas limitações e aprimorei minhas qualidades. Tenho uma impulsão acima da média, facilidade em jogar com os dois pés e meu cruzamento é cirúrgico. Quando cheguei aqui o nosso time era uma várzea completa. Em pouco tempo meus cruzamentos começaram a consagrar até mesmo o pior dos nossos atacantes. O time cresceu e eu me tornara uma referência pelo lado direito de ataque. Nesse meio tempo o nosso presidente fechara acordo com uma patrocinadora que estava disposta a despejar dinheiro nos cofres do clube. Muitos jogadores de seleção foram contratados e houve apenas um caso isolado de um jogador vindo do interior do Estado como aposta: Marcão. Não quero desmerecer nenhum jogador do interior... Muitas apostas podem dar certo, mas ele não demonstrou isso no início. Marcão é um alemão alto, magro e de fala mansa. Muitas vezes é engraçado falar com ele... Sua voz não condiz com seu porte físico. Sem falar que é um ignorante total. Lembro certa vez que o nosso goleiro Nei contou uma história envolvendo fantasmas no hotel em que estávamos hospedados... Isso foi o suficiente para Marcão não dormir naquela noite e quase não embarcar mais nas outras viagens. Esse era o Marcão. Um alemão com quase dois metros de altura, mas burro feito uma porta. Muitos de nós achava que ele não teria muitas chances no grupo.

O tempo foi passando e fui novamente convocado para a seleção. Com a minha ausência do time em virtude da convocação e da séria lesão do meu reserva imediato aconteceu o ingresso de Marcão no time. O que muitos podem explicar como sorte ou destino eu vejo como minha desgraça profissional. Foi preciso três jogos para aquele alemão burro arrasar em campo. Cheguei a acompanhar um jogo dele pela televisão. Marcão era realmente um fenômeno. Era uma besta taticamente, pois não entendia nada que o nosso técnico falava. Atacava nas horas que era preciso defender e muitas vezes se metia dentro da área junto com os nossos atacantes. O único foco dele durante a partida era o gol. Talvez sua única qualidade fosse essa, mas o suficiente para conquistar a admiração da torcida e da imprensa. Quando aquela besta pegava a bola era quase impossível desarmá-lo. Era preciso três e até quatro marcadores para tentar roubar a bola dele.

Quando retornei da seleção Marcão havia se tornado o principal jogador do time e a revelação do momento. Sorte ou destino para a besta e a desgraça e a reserva para mim. Passaram-se semanas, meses e quase não jogava mais no time. Foi então que ontem procurei a imprensa e reclamei uma nova chance ou uma rescisão de contrato. O que consegui foi inúmeras corridas em volta deste sol quente como punição. Voltas e mais voltas num ritmo contínuo de um preparador físico arrogante.

Em alguns minutos tudo muda. O preparador interrompe a corrida. Escutam-se alguns gritos vindos do campo. Os médicos saem correndo em direção a Marcão que rola no gramado gritando de dor e vomitando sangue. Nosso técnico assiste tudo em silêncio... Acompanha aquele alemão agonizando até o vestiário e em seguida caminha em minha direção. Ele me entrega o colete do time titular sem dizer nada... Nem precisa. O que muitos podem achar como destino ou desgraça da besta eu vejo como sorte e 50 mil muito bem pagos para um cozinheiro endividado ter caprichado no almoço de Marcão.