domingo, 23 de outubro de 2011

Império Branco



Império Branco
Márcio Chacon

A estrada era esburacada e quase que impossível de um veículo trafegar. Para piorar nos conseguiram a pior camionete para se realizar uma operação de negociação envolvendo índios e garimpeiros.

Abri meu notebook e, ao mesmo tempo em que o equilibrava entre as pernas, refletia comigo mesmo o que havia feito para estar no meio da floresta amazônica dentro de um veículo caindo aos pedaços. A resposta era simples: Bianca. Largara o curso de Administração faltando poucos semestres para a formatura por causa dela. Foram anos de estudo e diversos cursos de especialização voltada ao comércio internacional. Cheguei a fazer estágio fora do país para aprender a falar o inglês fluentemente. Mas acabei largando tudo para participar de mais um grupo protetor do meio ambiente organizado por Bianca. Larguei tudo o que tinha para ficar perto dela. Hoje tenho certeza que não faria de novo. Diariamente você encontra muitas pessoas que defendem a preservação do meio ambiente, mas a grande verdade é que quase ninguém faz merda nenhuma para ajudar. Não posso condenar ninguém... Muitas vezes é complicado você acordar cedo e entrar floresta adentro para tentar dialogar com garimpeiros armados ou até mesmo com índios paranóicos. A Bianca mesmo caiu fora na nossa segunda missão quando um garimpeiro apontou um revólver para a nossa camionete. Pior que isso foi saber que a vadia estava me traindo com seu professor antes mesmo de terminar comigo. O que me restava era fazer as malas e voltar pra casa, mas tinha dado minha palavra ao delegado da região e também ao padre Vagner que quando acontecesse qualquer turbulência envolvendo índios e brancos eu iria ajudar. Infelizmente isso aconteceu e agora estava ali.

Éramos quatro dentro da camionete. Estava comigo um policial aposentado conhecido como sargento Silva. Era o que mais falava do grupo. Adorava dizer que cansou de trocar tiro por dentro da selva amazônica. Na verdade não precisava dizer muito, pois haviam cicatrizes pelo seu corpo. Tinha uma marca de bala no braço e outra muito feia no rosto. Segundo seu heróico depoimento ele teria se desviado a tempo e a bala apenas raspado e rasgado seu rosto. Percebi também que ele tinha uma cicatriz grande na mão direita, como se tivesse tido esfaqueado, mas ele não quis dar mais detalhes sobre ela.

Tínhamos no nosso grupo o padre Vagner. Homem mais quieto, mas muito importante quando tínhamos que negociar com os garimpeiros. Assim como eu e o sargento... O padre também tinha seus motivos para estar ali e tenho certeza que não foi nenhum desejo de Deus. A reforma da igreja aconteceu por causa de doações dos moradores da região. Moradores que ganham dinheiro através do garimpo... Pouco importando se ele é ilegal ou não. Afinal de contas assistimos diariamente muitas empresas, cidades e até impérios que cresceram com mentiras, roubos e matanças. O conceito de certo e errado não importa. Principalmente dentro de um vespeiro que é a selva.

 Também participava da nossa missão um índio que nos servia como guia. Era conhecido como Ismael e, embora o sargento Silva discordasse, ele era extremamente importante na hora de acharmos uma melhor rota na selva... Principalmente quando escurecia. Ismael era um moreno magro que deveria ter no máximo uns trinta anos. Passava a impressão de ser um indivíduo bastante inocente, mas na verdade era bastante esperto e muitas vezes chegava até a assustar quando fitava algum dos nossos equipamentos. Ficou feliz quando ganhou um celular de Vagner, mas o que ele queria mesmo era o meu notebook. O maldito não tirou os olhos da minha mochila desde que a viagem teve início.

            Passaram-se quase duas horas e enfim chegamos ao acampamento dos garimpeiros. Antes mesmo de descermos da camionete um grupo de índios nos cercou armados de facas e bastões. Vagner saiu e tentou conversar com o índio mais enérgico. De nada adiantou, pois levou soco no rosto tão forte que caiu na mesma hora cuspindo sangue no chão. Silva e eu nos ajoelhamos ao lado do veículo. Ismael permaneceu dentro da camionete como se estivesse procurando por algo. O mais estranho que havia apenas índios entre nós... Não havia nenhum sinal de garimpeiro. Para piorar existiam poças de sangues em vários pontos do acampamento. Minha esperança era que eles estivessem dentro das casas. Eu tremia, mas não sabia explicar exatamente se era medo ou raiva. Estava apavorado diante dos índios e daquela terra pintada de sangue, mas ao mesmo tempo jurava que se voltasse vivo daquele inferno iria procurar Bianca. Ia matar aquela vagabunda e o desgraçado que estava transando com ela. Finalmente Ismael desceu do veículo e então perguntei pra ele se sabia onde estavam os garimpeiros. Aquele índio magro checou algo no celular ganho de presente, se concentrou naquele brinquedo por alguns segundos e então me encarou dizendo:

- Por aí...

A resposta daquele índio podia parecer inofensiva e até mesmo cômica para muitos, mas para mim, Vagner e até mesmo Silva, significava a morte. Assim como é fácil de ser dita também é fácil de ser executada. Vagner parecia ler os meus pensamentos e então falou algo difícil naquele momento. A simples e dura verdade:

- Pelo que entendi está parecendo que algum garimpeiro violentou uma menina índia e então eles vieram para se vingar.

Naquele momento mais um grupo de índios chegaram. Haviam alguns armados com rifles... Possivelmente armas de garimpeiros. Silva então começou a chorar copiosamente. Voltei a encarar nosso guia:

- Ismael, me diga que não sabia de nada! Por favor me diga!

- Não sabia até chegar aqui. Assim como vocês.

-Então diga aos homens de sua tribo para darem um fim a esse massacre. Já tiveram sua vingança. Deixe o resto com a gente. Faz muito tempo que atrocidades envolvendo índios e garimpeiros acontecem e nada é feito. Deixe o padre conversar com vocês, deixe-me documentar tudo e procurar as autoridades. Se nos matarem só farão aumentar ainda mais esse preconceito e esse ódio envolvendo brancos e índios.

O guia não falou nada. Aquelas palavras pareciam ter provocado algo em sua mente. Sinceramente não fazia diferença matar mais alguém... Muito menos um homem branco buscar as autoridades para defender uma tribo indígena. A grande verdade que jamais contaria a Ismael é queria voltar para matar uma antiga namorada e o homem que estava com ela. A imagem de Bianca não saía de dentro da minha cabeça. Medo e raiva se misturavam... Estava enlouquecendo. Silva continuava chorando enquanto Vagner rezava pedindo proteção divina. Foi então que nosso guia foi até a camionete e pegou minha mochila. Um dos índios armados se aproximou dele e apontou o rifle na minha direção. Ismael falou algo para aquele índio armado. Não entendi a palavra, foi curta e na língua deles. Em segundos descobri o significado. Escutei um estrondo forte e a minha cabeça ferver por dentro. Alguns segundos de uma dor absurda até vir um sono forte e paralisante. Tentei abrir os olhos e vencer a morte de todas as maneiras, mas foi em vão. Já não consegui mais sentir o meu corpo... O que me restou foi tentar organizar idéias dentro de minha mente. Não sei dizer quanto tempo essa guerra envolvendo brancos e índios vai durar. Talvez tenha sido morto porque seja um dos brancos maus querendo vingança a todo o momento. Talvez eu tenha sido morto porque um índio vagabundo tenha gostado do meu equipamento.

Aos poucos a imagem de Bianca vai desaparecendo nas minhas lembranças. Sinto como se estivesse flutuando em direção a algum lugar desconhecido. Não tenho medo... Muito pelo contrário. A sensação é até agradável. Só rezo para que se algum dia abrir os olhos novamente ainda consiga lembrar dela... Mesmo que eu acorde no pior dos infernos prestes a explodir.

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