terça-feira, 18 de outubro de 2011

Monstro




Monstro
Márcio Chacon

Monstro: Tudo o que é contra a ordem regular da natureza; Coisa gigantesca e colossal; Pessoa cruel, feroz, desumana e perversa. (dicionário Michaelis da língua portuguesa)



Já é tarde. A chuva forte me castiga na parada enquanto o ônibus não vem, mas chegar molhado em casa é a última das minhas preocupações. Terei que contar a Lúcia que fui demitido. Parece que depois da gravidez nossa vida despencou. Menti dizendo que estava feliz com a gravidez dela, mas foi uma péssima hora para termos um filho.
O ônibus finalmente chega. Passo a roleta e sento bem no fundo. Conto cinco a seis pessoas no máximo. Todos de olhares cabisbaixos e cansados. Mesmo sentando no fundo ainda escuto o barulho do radinho de pilha do cobrador. Ele se esforça para sintonizar um jogo de futebol, mas não consigo descobrir quem estaria jogando numa hora dessas. Também não consigo me lembrar que dia da semana é hoje... Saí totalmente perturbado da fábrica. Sei que o pai de Lúcia vai adorar saber da notícia. Aquele velho fervia por dentro durante o casamento e tinha certeza que Lúcia pediria ajuda a ele logo quando os primeiros problemas começassem a surgir.
A chuva não diminui e o ônibus se arrasta diante de um trânsito caótico. O caminho será demorado até deixarmos o centro. Quando pegarmos a avenida Brasil estaremos livres do trânsito e do caos. Encosto a cabeça no vidro e tento dormir um pouco... Ao menos enquanto estivermos presos aqui. Fecho os olhos pensando no que dizer a Lúcia. Aos poucos o sono começa a aparecer até o rádio do cobrador despertar a todos com uma chamada policial. Ele chega a comentar algo com o passageiro sentado perto dele, mas não consigo entender do que se trata. Passam-se vinte minutos e finalmente deixamos o centro. Antes de pegarmos a avenida três viaturas policiais nos ultrapassam... Presumo que sejam as que responderam ao chamado noticiado no rádio. Hugo esperou o pior dia do ano para me demitir. Fiquei oito anos na fábrica e modernizei toda a linha de montagem, mas isso pouco importa para ele. Hugo preferiu dar o emprego ao seu primo que de longe se percebe que não passa de um total incapacitado.
Enfim o caminho parece estar mais limpo... O motorista acelera. Não temos mais tráfego e tumulto... Apenas algumas pouquíssimas sinaleiras e estarei logo em casa. Abro a carteira para conferir o dinheiro pela segunda vez desde que deixei o serviço, mas desta vez sou interrompido por uma freada brusca do motorista. Bato com a cabeça no vidro e solto minha carteira e algumas moedas no chão do ônibus. Escuto um passageiro gritar, ponho a mão na testa para saber se estou sangrando e tento me levantar... Não consigo. A pancada me deixa totalmente tonto e a dor é terrível. Junto a minha carteira com dificuldade... Olho pela janela e não consigo ver nada... Apenas a chuva. O motorista e alguns passageiros saem rapidamente do ônibus. O cobrador e outro passageiro me ajudam a levantar e sair. Ele olha pra mim e resmunga:
- Acho que batemos em um cachorro dos grandes.
Nos juntamos ao motorista e aos demais passageiros para ver o corpo de um animal morto na estrada... Mal sabíamos que o que veríamos ficaria guardado em nossas mentes pelo resto de nossas vidas. O cobrador se enganou ao dizer que se tratava de um cachorro... Aquele animal era grande demais para um cachorro. Talvez pudesse ser uma espécie de lobo, mas muito maior e mais forte do que já tivesse visto na televisão. E não estava morto... Estava vivo, respirando com muita dificuldade e mesmo assim se tornando barulhento e assustador. Tinha a pele escura e a cabeça pintada em vermelho por causa de um corte fundo. Aquela coisa estava ferida gravemente e não tinha forças para se levantar... O único motivo para estarmos vivos era esse... Aquele animal nos encarava como se fossemos realmente uma ameaça.          
Alguns policiais chegam junto com uma ambulância. Um deles pede para nos afastar e deixar espaço para a ambulância passar. Na verdade não era uma ambulância comum. Dois militares mascarados saem de dentro dela com uma espécie de rede. Todos percebemos na hora que aqueles homens não vieram salvar ninguém e sim capturar aquele animal ferido.
Em pouco tempo aquele monstro já está cercado por policiais e militares. Alguns curiosos também aparecem e se juntam ao nosso grupo. Eu estou totalmente paralisado. Não consigo definir o que sinto exatamente. Ao mesmo tempo em que tenho medo e deseje fugir... Tenho vontade de ver como aquilo tudo termina. Preciso saber o que irão fazer com aquele animal. Todos nós estávamos ali esperando o desfecho para aquela cena absurda que parecia não ser real.
Foi então que a chuva diminuiu e junto com ela o barulho da respiração daquele monstro. Ele ainda está vivo e respirando, mas agora era de forma silenciosa... Como se estivesse planejando alguma coisa e juntando forças. Um militar mascarado se aproxima e injeta uma espécie de tranqüilizante em seu peito. A idéia parecia ser simples: Esperar ele adormecer para depois prendê-lo e levá-lo de volta para algum maldito laboratório tão secreto que a sociedade jamais descobrirá onde fica. Não sei o que havia naquele tranqüilizante, mas acredito que não tenha sido o suficiente. Aquele lobo não dorme. Ninguém se move dali e os curiosos aumentam... Já havia umas trinta pessoas no local. Alguns militares chegam com a enorme rede enquanto outro traz mais uma dose de tranqüilizante, mas desta vez aquele animal não deixa que o adormeçam. Bastam dois a três segundos para aquele monstro atacar o militar mascarado. Ele salta sobre aquele homem e precisa apenas de uma mordida para arrancar seu braço fora. Alguns policiais começam a atirar enquanto os militares soltam a rede e correm. A pele daquele lobo parece ser indestrutível... As balas lhe fazem cócegas. Outros dois militares são atacados pelo monstro... Foi então que ele corre e sobe em uma viatura policial. Nosso grupo ainda está bem numeroso até o momento que aquela fera nos vê... Mesmo de longe. Não espero ela descer de cima daquele carro... Começo a correr. Todos fazem o mesmo. Não escuto mais a chuva: Apenas gritos, tiros e a respiração daquele monstro rosnando. Estou a duas quadras da minha rua e corro o mais rápido que posso. O barulho daquele animal está cada vez mais perto e foi então que ouço um dos passageiros cair e gritar... Não paro para ver se ele está sendo atacado. Resolvo entrar no pátio de uma creche e atalhar o caminho. Talvez me separando do grupo esteja a salvo. Atravesso todo o pátio da creche, pulo um muro alto e já estou na outra quadra. Descendo mais um pouco estaria na minha rua e é exatamente o que faço. Atravesso uma antiga cancha de basquete, driblo algumas árvores e arbustos e finalmente chego ao portão de acesso para minha rua. Estou exausto... Sento atrás de uma árvore próxima ao portão para descansar e tentar raciocinar novamente. Ainda se ouve algumas sirenes, mas estão longe. O importante é que não se ouvia mais os gritos e nem aquele lobo assassino. Abro o portão devagar e de maneira silenciosa. A rua está escura e deserta. Há iluminação somente em três postes... Um deles bem em frente ao bar do Celso. Talvez desse uma parada lá para tentar descobrir algo na televisão ou talvez fosse melhor ir direto pra casa e contar tudo a Lúcia. Começo a andar acelerado em direção a minha casa. A escuridão e o silêncio são assustadores. Paro de caminhar quando escuto algo passar correndo atrás de mim. Olho para todos os lados e não vejo nada. Aquilo me paralisa... Congela-me. Não há nada ali. Apenas a escuridão e eu. Volto a caminhar, o barulho continua... Acelero o passo e o barulho aumenta de maneira assustadora. Paro e enxergo um vulto se escondendo entre as árvores. Pode ser um cachorro ou um gato. Pode ser apenas minha imaginação pregando uma peça na escuridão. Caminho em direção àquelas árvores para tentar descobrir o que é aquele vulto e por fim ao meu pânico. O barulho não é mais de passos e sim da respiração daquele animal... Meu coração dispara. Corro em direção a minha casa. O barulho continua me perseguindo e ficando cada vez mais perto. Vejo vultos e sombras de monstros por todo o lado. De longe enxergo a minha casa. Antes de pular para o pátio tiro as chaves do bolso. O barulho continua apavorante. Os vultos me cercam. Entro em casa e tranco a porta. O barulho da respiração daquele monstro ainda é forte. Está tudo escuro. Chamo por Lúcia, mas ela não responde. Atravesso a sala vendo sombras apavorantes pela parede. Fico com medo de acender a luz e dar de cara com o monstro de verdade. A porta de nosso quarto está fechada... Lúcia raramente a tranca. Abro-a devagar e silenciosamente. Encontro Lúcia deitada na cama cercada por vultos e monstros. Sento ao seu lado e tento ligar o abajur. Minhas mãos tremem... Aquelas sombras malignas aumentam na escuridão. Finalmente me controlo e acendo o maldito abajur. A luz faz todos os vultos e monstros desaparecerem. Ela também acorda Lúcia que diz a coisa mais doce que ouvi durante todo o dia:
- Deixei a janta no forno.
Agradeço e vou até a cozinha. Procuro acender todas as lâmpadas que encontro no caminho. As sombras vão desaparecendo na medida que vou iluminando a casa. Tiro um prato de comida de dentro do forno e coloco sobre a mesa... A fome não vem. Vou até a sala e ligo o rádio para saber de alguma coisa... Em poucos segundos tudo que presenciei era noticiado. Aquele lobo teria atacado treze pessoas até ser morto no bairro Cruzeiro. Bem longe da minha casa. Desligo o rádio e guardo o prato novamente dentro do forno. Volto para o quarto e deito ao lado de Lúcia. Não há mais vultos e aquele barulho vindo da rua está tão baixo que não incomoda mais. Lá fora apenas o vento, as árvores e alguns carros... Mais nada. E isso é o suficiente para me fazer dormir.

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