sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Realidade Paralela

Mountain Farming
Fotografia: Bernhard Siegl (Austria)


Realidade Paralela
Gilberto Strapazon




“Sabe-se que nos planos astrais as formas existentes utilizam nossa energia vital para se manifestar”.


I


O pequeno grupo descia pela encosta. Pela floresta de pinheiros viam o céu azul. A paisagem magnífica de grandes montanhas facilmente poderia ser nos Alpes ou quem sabe na Nova Zelândia.
A temperatura era agradável como a primavera. Aqui e ali pequenos insetos coloridos voavam.
Uns poucos passos a frente, Gerson caminhava observando os arredores quando uma leve brisa que veio por trás do grupo trouxe o aroma inconfundível. Como um sinal de alarme no mesmo instante ele se virou e olhou para os outros três que vinham com uma expressão descontraída.
Bastou um instante de seu olhar para que todos imediatamente parassem com os olhos varrendo todo perímetro.
Gerson, o líder do grupo, era jovem, no máximo uns trinta anos. Tinha as feições marcadas de quem já passara por várias situações diferentes. Algumas marcas nos braços eram lembranças de recentes ferimentos, todos pequenos.
Olhou para o grupo e falou muito sério:
-Eu não acredito que um de vocês foi peidar logo agora! Quem foi que fez isto? Esqueceu onde estamos?
Norberto, o terceiro da fila, alto e de cabelos ruivos, imediatamente respondeu:
-Desculpe Gerson, foi sem querer. Estamos indo tão bem que eu relaxei e esqueci que a última refeição poderia fazer isto. Aquele assado estava muito bom!
-Claro que poderia né? Bradou Gerson. Aqui qualquer coisa pode estragar com tudo. Bem, até agora não vi nada também. Talvez esse lugar seja neutro também. Bem, quem sabe temos algum tempo ainda. Vamos aproveitar para aliviar um pouco.
Imediatamente todos deram apenas alguns passos e saíram da trilha para urinar.
-Não! Todos juntos de novo não! Gritou Gerson, mas era tarde.
O cheiro da urina fresca já se espalhava com o vento na mesma direção do peido do Norberto.
Ouviram um zumbido leve que vinha da mata logo a frente. As folhas das árvores brilhavam.
-Corram! Gritou Norberto, mas todos já estavam recuando correndo, subindo um pouco a encosta e logo descendo entre as árvores. Sempre era melhor seguir em frente do que voltar por um caminho já trilhado.Eles haviam aprendido que os caminhos sumiam ou mudavam logo que tiivessem saído de vista.  
O zumbido parou rapidamente e eles também fizeram uma rápida pausa para ver o que acontecera.
No lugar onde estavam a pouco, havia uma casa de madeira, o jardim de flores muito bonitas.
Observaram alguns instantes e voltaram mais relaxados.


II

A casa recém-surgida parecia ter estado ali por décadas. Muito bem cuidada, janelas abertas mostravam o interior bem decorado e o cheiro de um bolo no forno convidavam a entrar.
Olharam-se e sem dizer uma palavra, entraram.
A mesa estava servida e eles se espalharam pela casa. Julia sentou-se à mesa com Gerson  e serviram-se de torradas quentes com manteiga.
Da cozinha veio uma bela mulher, traços nórdicos com uma bandeja, trazendo o bolo recém-tirado do forno. Começaram a conversar animadamente sobre as coisas cotidianas. Era tão natural que pareciam conviver diariamente e todos se conhecessem.Marcos trocava algumas brincadeiras com a mulher na cozinha enquanto pegava uma cerveja na geladeira.
Norberto disse que ia aproveitar para tomar um banho e a mulher avisou que a roupa dele já estava passada no quarto de cima. Ele subiu e logo se ouvia que conversava com outra mulher mais jovem no andar de cima.  A conversa era animada e ambos foram rindo para o banheiro.
Luis que por enquanto tinha preferido comer apenas alguns biscoitos amanteigados vasculhava a estante de livros. Por sinal, os biscoitos eram deliciosos.
Gerson olhou para ele e disse:
-Luis, quem sabe desta vez algum destes livros possa ter algo sobre este lugar?
-Bem, é o que tento descobrir. Mas todos os livros sempre parecem tão comuns.  Assuntos gerais, história antiga, romances. Nada de especial. Já tentei até contar quantas letras tem nos títulos para ver se tem alguma relação ou se as iniciais formam alguma sigla, qualquer coisa. Nada! Parece o que encontraríamos em qualquer livraria ou banca de revista daquelas comuns. A única coisa é que os personagens retratados, apesar de familiares, não tem nomes que possamos conhecer. As revistas parecem as mesmas de sempre, mas nalgum outro lugar. Lembram aquela coleção de vídeos pornô que encontramos na outra vez? Eu poderia jurar que conheci aquela atriz pessoalmente, mas não lembro donde. Pode ter sido num daqueles programas de entrevista também. Acho que ela foi eleita deputada no país dela.Mas não é a mesma, apenas é algo familiar, como tudo aqui. Olhem os enfeites na prateleira. Não parecem aqueles que sua vó tinha em casa Julia?
Fazendo uma pequena pausa, Julia olhou sobre os óculos, e continuou passando mel numa fatia de bolo:
-É que você está sempre esquecendo que nem sabemos como chegamos aqui. Pensa que estamos nalgum buraco qualquer ou fomos sequestrados.  Desta vez tivemos sorte, e ainda por cima, o Norberto está se divertindo lá em cima. Deu uma piscada para Gerson que conversava qualquer coisa com a mulher da cozinha:
-Como de costume não é Gerson?  
Ambos riram e olharam para a escada. Norberto vinha com ar satisfeito, o cabelo ainda úmido e uma jovem de seus 19 anos, cabelos também úmidos,  contava sobre o que tinha feito na semana.  Sentaram para lanchar enquanto os demais cada um a sua vez tomou banho e trocou de roupas.
Era como estar numa pousada, onde todos eram íntimos e se conheciam.
Mas eles sabiam que não poderiam ficar ali.
A casa era agradável e com uma boa noite de sono, todos estariam bem no dia seguinte.
Por precaução, fizeram Norberto comer doces que sempre faziam ele peidar. E todos urinaram do lado de fora da casa antes de deitar. Observaram algum tempo, mas nenhum som, nenhuma alteração no ambiente ocorreu. Bem, desta vez a combinação parece ter dado certo.Pena que não poderia ser repetida noutro lugar, a manifestação só acontecia uma vez e não tinha muita lógica. Era como um sonho. 

Macalania woods
Artista: BloodlineV (Finland)
Como a noite estava agradável, Gerson pegou uma garrafa de vinho, um pedaço de queijo, convidou Julia e foram para o jardim em frente.
A noite estrelada era magnífica.  Deviam estar a uns mil metros de altura. A lua crescente tinha um leve brilho azulado.
Beberam vinho e entre risos e brincadeiras se aconchegaram sobre a relva.
Seus corpos logo estavam nus e Julia puxou Gerson para junto de si. As posições variavam e ela logo montou por cima dele, apertando-o com as pernas. O gozo dela veio primeiro, forte e por instantes ela pensou que todas as estrelas estavam ao seu redor... Estava toda molhada, seus fluidos íntimos escorriam pelas coxas até o chão...
As estrelas ao seu redor... Um zumbido... Ela despertou do estado de relaxamento instantaneamente.
-Gerson... Gerson! Estou molhada! Devíamos ter ficado dentro da casa, em cima da cama estaria seguro! Droga!
O vento que começara de repente já estava forte.
Numa fração de tempo todos do grupo já estavam junto deles que se vestiram rápido enquanto observavam os arredores.
-De novo! Gritou Norberto! Bem, desta vez não fui eu falou rindo e apontando para Julia, que ajeitava a calcinha enquanto saiam do lugar rapidamente para descer novamente a encosta.
O lugar em que estavam parecia ter se tornado um campo de estrelas. Não havia mata, a casa havia sumido bem como seus ocupantes. Algumas coisas estranhas flutuavam no céu, mas já eram conhecidas e pareciam inofensivas.Costumavam sumir logo.

III



Gods of the Valley
Artista: Sandro Rybak (Germany)
Luis, sempre prevenido, tinha abastecido sua mochila com alguns mantimentos antes de ir deitar. Pelo jeito iriam precisar. A luz da Lua que agora parecia estar quase cheia mostrava que estavam numa larga área sem vegetação.
Gerson perguntou sobre as mochilas. Norberto respondeu:
-Pegamos todas é claro. Eu posso ser meio desligado, mas já aprendi que aqui não podemos baixar muito a guarda. Que lugar maluco! Qualquer coisa que saia dos nossos corpos faz mudar tudo! Eu peido e aparece uma cabana suíça. A Julia trepa e o mundo vira um deserto sob a luz do Luar. O Marcos arrota cerveja e começa a chover.
Continuou:
-Lembram-se daquela vez que o Luis não aguentou e foi dar uma cagada na beira dos arbustos? Foi até engraçado quando a merda encostou no chão e aquele monte de fadas luminosas surgiu, pena que botaram fogo em toda mata e tivemos que pular do penhasco dentro daquele rio gelado.
Continuou:
-E aquela vez que algum alguém mijou nas pedras e apareceu aquele rio com o cais? Acho que aquele vilarejo era muito doido mesmo. Onde mais teria uma banda de rock progressivo tocando num bar de estilo rural no meio das montanhas? Não descobrimos o nome, mas eu compraria todos discos deles com certeza. E a cerveja era muito boa também! Hahahahahah...
Gerson olhou para Julia e riram ambos.
-Bem - disse Gerson – pelo menos disto temos certeza. Nossos excrementos e secreções naturais fazem as coisas por aqui mudarem.  Engraçado e que as vezes não acontece nada. Já tentamos orações, chamar demônios, seres espirituais, de tudo, mas parece que nada do que sabemos de ocultismo e religião mudou alguma coisa.
Julia perguntou:
-Alguém aí conseguiu marcar o tempo? Quantos dias será que ficamos naquela cabana? A barba do Norberto cresceu um pouco, acho que deve ter durado uma semana. Que coisa, é sempre assim. Parece que estamos no reino das fadas onde o tempo não corre.Nunca lembramos mesmo como chegamos aqui né? Acho que eu que estava no meu quarto fazendo algumas orações, mas não sei quando foi isto. O Marcos parece que lembra alguma coisa sobre estar na mata procurando algumas ervas, mas nunca fala nada.
Os demais fizeram silêncio e Julia percebeu que olhavam para ela.
A mulher era o calendário natural. Tinha o ciclo da Lua regulando seu corpo. Ela poderia saber.
Júlia olhou para todos, meio cabisbaixa se lembrando e disse:
-Bem, eu sinto meu peito meio endurecido. Acho que ficamos umas duas semanas por lá. Sei que parece ter sido apenas um dia. Bem, o que quero dizer que é que acho que estou para menstruar de novo, já tenho algumas cólicas. E se isto acontecer aqui neste lugar árido, sabe-se lá o que pode aparecer. Lembram-se das borboletas carnívoras que nos perseguiram da outra vez?
Ficaram quietos por um tempo, enquanto caminhavam. Logo Gerson fez o grupo parar, numa área mais abrigada.
-Bem, se a Julia vai menstruar a chance de que seu sangue, ao tocar o chão, traga algo muito estranho é maior. Então, acho que vamos nós mesmos provocar algo, que acham? Com sorte poderemos conseguir alguma coisa em que possamos estar mais seguros do que este lugar aqui.
Todos se olharam por alguns instantes e se deram as mãos.
Gerson olhou para todos e olhou para Norberto que sacudia as pernas.
Falou:
-Todos prontos para correr ou serem felizes algum tempo? Então vamos lá! Vamos tentar algo light quem sabe. Aproveitem para cuspir e Norberto: pode peidar!
Alguns passos adiante e perceberam uma luz avermelhada na encosta do lado direito.
Olharam e parecia que a terra estava se abrindo. Logo o vento trouxe o calor da lava derretida que começou a sair pela abertura. O chão tremia levemente.
Um zunido fez com que olhassem para cima. Alguma coisa muito grande voava sobre eles.
Gerson avisou:
-Pessoal, desculpem, desta vez a falha foi minha e não do Norberto. Esqueci que queijo picante com vinho me faz peidar deste jeito! Corram que desta vez deu merda!


.'.

28/09/2012

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Desfecho



            

Desfecho
Márcio Chacon



             Seu coração batia cada vez mais rápido, suas mãos tremiam e as lágrimas dos seus olhos se misturavam com o sangue do seu rosto. Estava paralisada e totalmente à mercê daquela criatura. Como ia adivinhar que seu ente mais querido iria se transformar numa espécie de lobisomem?

            Aquele monstro faminto de olhos grandes e dentes afiados parecia ter a hipnotizado, pois a infeliz moça não conseguia se mexer, não conseguia fugir.

            Foi quando a fera chegou bem perto e a puxou pelo braço. Um puxão violento o suficiente para sentir um osso do seu braço romper e fazer aquela linda jovem gritar. Mas era em vão. Já se faziam meses que quase ninguém passava por aquela região, pois quase todos os animais já haviam sido mortos pelos caçadores.

            O feroz monstro aproximou seu grande focinho até o rosto da jovem. Seu perfume se misturava com seu sangue e isso ia aumentando cada vez mais sua fome por carne humana.


            A fera não hesitou e mordeu o pescoço de sua vítima. A triste moça teve poucos segundos de uma dor absurda até sentir uma incrível sensação de sono. Tentou juntar forças e suplicar pelo pouco de vida que ainda lhe restava. Murmurou poucas palavras do tipo, ser uma pessoa especial e que muitas gerações precisavam que ela vivesse naquele momento. Mas foi tudo em vão. A criatura continuava a morder seu pescoço de uma maneira violenta e cruel. Somente foi soltá-lá quando percebeu que a garota já estava morta.

            O monstro ficou alguns segundos admirando o belo corpo de sua vítima caída diante dele. O sangue derramado combinava com a capa que aquela garota usava. Talvez não precisasse realmente tê-la matado, mas sua fome era gigantesca. E foi então que a vovozinha, transformada em Lobo-Mau, comeu a Chapeuzinho-Vermelho.



terça-feira, 11 de setembro de 2012

Os Maus




Os Maus
Márcio Chacon

Renato conferiu o relógio mais uma vez antes de começar a guardar o material em sua mochila. O caderno foi guardado do mesmo jeito que fora tirado, pois não havia sido usado durante toda a aula de matemática. A conversa com Trindade realmente o havia afetado bastante.

Novas gangues estavam surgindo e com a prisão de Alemão havia a necessidade de um novo líder. Quando recebeu o telefonema de Trindade sabia que iria ser testado a partir daquele momento.

A gangue deles era composta por jovens de 13 no máximo 17 anos. A exceção era Trindade que completara 19 anos e até já havia sido preso por roubo. Ele poderia facilmente reunir os demais membros da gangue e se eleger como o novo chefe, mas preferiu testar Renato depois da aula.

O local escolhido foi um fliperama a poucas quadras da escola. Após a prisão de Alemão muitos garotos de uma gangue rival começaram a frequentar o lugar diariamente... Prática considerada proibida, pois cada gangue tem o seu local de encontro e isso vinha sendo respeitado quando Alemão ainda estava por perto.

Renato chegou ao fliperama poucos minutos após o término da aula.  Viu Trindade do outro lado da rua, mas não esperou por ele e entrou sozinho no estabelecimento. Esbarrou propositalmente num garoto da gangue rival e foi em direção às máquinas bem ao fundo do fliper. Antes de chegar até elas percebeu que fora seguido pelo mesmo garoto e seus amigos... Um confronto ali era inevitável.

Rapidamente e quase sem pensar, Renato tira a faca, que estava escondida embaixo de sua camisa, amarrada por um barbante. Num movimento brusco e certeiro, aloja a faca no braço do garoto desafiado, perto do bíceps. Sentiu a pele romper-se e a faca penetrar as carnes macias e quentes de seu adversário. Seguiu-se um silêncio, e quando deu por si, estava sendo observado por todos no fliperama. O menino que fora atacado, após o susto, começou a chorar copiosamente. Renato foi até a rua e procurou os olhos de Trindade, que o observava de maneira serena, quase como se ele esperasse por aquilo. Finalmente Renato havia mostrado do que era capaz. Então saiu correndo, esquecendo Trindade, a faca, e tudo mais para trás. Sentia-se quente, ao mesmo tempo com um frio no estômago. Sentia vontade de correr até o outro lado da cidade e voltar, tamanha sua energia naquele momento. E correu muito, andou mais um tanto, só voltando para casa ao anoitecer.

No outro dia, Trindade veio lhe procurar para lhe dizer algo que já sabia: Ele era o novo líder.