domingo, 23 de outubro de 2011

Império Branco



Império Branco
Márcio Chacon

A estrada era esburacada e quase que impossível de um veículo trafegar. Para piorar nos conseguiram a pior camionete para se realizar uma operação de negociação envolvendo índios e garimpeiros.

Abri meu notebook e, ao mesmo tempo em que o equilibrava entre as pernas, refletia comigo mesmo o que havia feito para estar no meio da floresta amazônica dentro de um veículo caindo aos pedaços. A resposta era simples: Bianca. Largara o curso de Administração faltando poucos semestres para a formatura por causa dela. Foram anos de estudo e diversos cursos de especialização voltada ao comércio internacional. Cheguei a fazer estágio fora do país para aprender a falar o inglês fluentemente. Mas acabei largando tudo para participar de mais um grupo protetor do meio ambiente organizado por Bianca. Larguei tudo o que tinha para ficar perto dela. Hoje tenho certeza que não faria de novo. Diariamente você encontra muitas pessoas que defendem a preservação do meio ambiente, mas a grande verdade é que quase ninguém faz merda nenhuma para ajudar. Não posso condenar ninguém... Muitas vezes é complicado você acordar cedo e entrar floresta adentro para tentar dialogar com garimpeiros armados ou até mesmo com índios paranóicos. A Bianca mesmo caiu fora na nossa segunda missão quando um garimpeiro apontou um revólver para a nossa camionete. Pior que isso foi saber que a vadia estava me traindo com seu professor antes mesmo de terminar comigo. O que me restava era fazer as malas e voltar pra casa, mas tinha dado minha palavra ao delegado da região e também ao padre Vagner que quando acontecesse qualquer turbulência envolvendo índios e brancos eu iria ajudar. Infelizmente isso aconteceu e agora estava ali.

Éramos quatro dentro da camionete. Estava comigo um policial aposentado conhecido como sargento Silva. Era o que mais falava do grupo. Adorava dizer que cansou de trocar tiro por dentro da selva amazônica. Na verdade não precisava dizer muito, pois haviam cicatrizes pelo seu corpo. Tinha uma marca de bala no braço e outra muito feia no rosto. Segundo seu heróico depoimento ele teria se desviado a tempo e a bala apenas raspado e rasgado seu rosto. Percebi também que ele tinha uma cicatriz grande na mão direita, como se tivesse tido esfaqueado, mas ele não quis dar mais detalhes sobre ela.

Tínhamos no nosso grupo o padre Vagner. Homem mais quieto, mas muito importante quando tínhamos que negociar com os garimpeiros. Assim como eu e o sargento... O padre também tinha seus motivos para estar ali e tenho certeza que não foi nenhum desejo de Deus. A reforma da igreja aconteceu por causa de doações dos moradores da região. Moradores que ganham dinheiro através do garimpo... Pouco importando se ele é ilegal ou não. Afinal de contas assistimos diariamente muitas empresas, cidades e até impérios que cresceram com mentiras, roubos e matanças. O conceito de certo e errado não importa. Principalmente dentro de um vespeiro que é a selva.

 Também participava da nossa missão um índio que nos servia como guia. Era conhecido como Ismael e, embora o sargento Silva discordasse, ele era extremamente importante na hora de acharmos uma melhor rota na selva... Principalmente quando escurecia. Ismael era um moreno magro que deveria ter no máximo uns trinta anos. Passava a impressão de ser um indivíduo bastante inocente, mas na verdade era bastante esperto e muitas vezes chegava até a assustar quando fitava algum dos nossos equipamentos. Ficou feliz quando ganhou um celular de Vagner, mas o que ele queria mesmo era o meu notebook. O maldito não tirou os olhos da minha mochila desde que a viagem teve início.

            Passaram-se quase duas horas e enfim chegamos ao acampamento dos garimpeiros. Antes mesmo de descermos da camionete um grupo de índios nos cercou armados de facas e bastões. Vagner saiu e tentou conversar com o índio mais enérgico. De nada adiantou, pois levou soco no rosto tão forte que caiu na mesma hora cuspindo sangue no chão. Silva e eu nos ajoelhamos ao lado do veículo. Ismael permaneceu dentro da camionete como se estivesse procurando por algo. O mais estranho que havia apenas índios entre nós... Não havia nenhum sinal de garimpeiro. Para piorar existiam poças de sangues em vários pontos do acampamento. Minha esperança era que eles estivessem dentro das casas. Eu tremia, mas não sabia explicar exatamente se era medo ou raiva. Estava apavorado diante dos índios e daquela terra pintada de sangue, mas ao mesmo tempo jurava que se voltasse vivo daquele inferno iria procurar Bianca. Ia matar aquela vagabunda e o desgraçado que estava transando com ela. Finalmente Ismael desceu do veículo e então perguntei pra ele se sabia onde estavam os garimpeiros. Aquele índio magro checou algo no celular ganho de presente, se concentrou naquele brinquedo por alguns segundos e então me encarou dizendo:

- Por aí...

A resposta daquele índio podia parecer inofensiva e até mesmo cômica para muitos, mas para mim, Vagner e até mesmo Silva, significava a morte. Assim como é fácil de ser dita também é fácil de ser executada. Vagner parecia ler os meus pensamentos e então falou algo difícil naquele momento. A simples e dura verdade:

- Pelo que entendi está parecendo que algum garimpeiro violentou uma menina índia e então eles vieram para se vingar.

Naquele momento mais um grupo de índios chegaram. Haviam alguns armados com rifles... Possivelmente armas de garimpeiros. Silva então começou a chorar copiosamente. Voltei a encarar nosso guia:

- Ismael, me diga que não sabia de nada! Por favor me diga!

- Não sabia até chegar aqui. Assim como vocês.

-Então diga aos homens de sua tribo para darem um fim a esse massacre. Já tiveram sua vingança. Deixe o resto com a gente. Faz muito tempo que atrocidades envolvendo índios e garimpeiros acontecem e nada é feito. Deixe o padre conversar com vocês, deixe-me documentar tudo e procurar as autoridades. Se nos matarem só farão aumentar ainda mais esse preconceito e esse ódio envolvendo brancos e índios.

O guia não falou nada. Aquelas palavras pareciam ter provocado algo em sua mente. Sinceramente não fazia diferença matar mais alguém... Muito menos um homem branco buscar as autoridades para defender uma tribo indígena. A grande verdade que jamais contaria a Ismael é queria voltar para matar uma antiga namorada e o homem que estava com ela. A imagem de Bianca não saía de dentro da minha cabeça. Medo e raiva se misturavam... Estava enlouquecendo. Silva continuava chorando enquanto Vagner rezava pedindo proteção divina. Foi então que nosso guia foi até a camionete e pegou minha mochila. Um dos índios armados se aproximou dele e apontou o rifle na minha direção. Ismael falou algo para aquele índio armado. Não entendi a palavra, foi curta e na língua deles. Em segundos descobri o significado. Escutei um estrondo forte e a minha cabeça ferver por dentro. Alguns segundos de uma dor absurda até vir um sono forte e paralisante. Tentei abrir os olhos e vencer a morte de todas as maneiras, mas foi em vão. Já não consegui mais sentir o meu corpo... O que me restou foi tentar organizar idéias dentro de minha mente. Não sei dizer quanto tempo essa guerra envolvendo brancos e índios vai durar. Talvez tenha sido morto porque seja um dos brancos maus querendo vingança a todo o momento. Talvez eu tenha sido morto porque um índio vagabundo tenha gostado do meu equipamento.

Aos poucos a imagem de Bianca vai desaparecendo nas minhas lembranças. Sinto como se estivesse flutuando em direção a algum lugar desconhecido. Não tenho medo... Muito pelo contrário. A sensação é até agradável. Só rezo para que se algum dia abrir os olhos novamente ainda consiga lembrar dela... Mesmo que eu acorde no pior dos infernos prestes a explodir.

O Último Dia



O Último Dia
Márcio Chacon


             Ainda está escuro. Estaciono o carro e cumprimento o nosso flanelinha Gilberto. Entro na delegacia e já sinto o cheiro do café de Melissa. Acendo todas as luzes e ligo todos os computadores. Já devia estar tudo ligado com a troca do plantão, mas parece que fui o primeiro a chegar (depois de Melissa). Escuto alguém passando pelo corredor acelerado. O salto alto ajuda na identificação... Sei que é ela me trazendo um copo de café:

- Bom dia, sargento.

- Bom dia, Melissa.

- Preparado para seu último dia?

- Por que não estaria? É um dia normal... Como foram todos os outros.

- Alguns achavam que nem ia aparecer por aqui hoje.

Rio junto com ela. Melissa é a única secretária em nosso setor e sabe lidar muito bem com o pessoal... Até mesmo com os chatos. Ainda por cima é linda. Uma ruiva de olhos brilhantes e corpo desenhado magnificamente por Deus. Ela sempre foi e sempre será objeto de desejo do pessoal e sabe muito bem disso. O que é realmente incrível é saber que, toda vez que consegue fazer uma pausa no serviço, ela aparece para conversar comigo. No início achei que estava fazendo a figura do pai ausente, mas bastaram algumas semanas para perceber que estava enganado... Sei que ela gosta de mim. Tenho o dobro de sua idade e estou me aposentando para buscar um lugar onde possa enterrar os fantasmas do passado. Já havia desistido da vida a muito tempo até ela aparecer. Melissa me fez sentir vivo de novo e não lembro o número de vezes que tive a chance de tê-la em meus braços e então fazer amor da maneira como os mais belos e perfeitos dos anjos merecem. O grande problema é o fato de ser um homem casado, mais velho e com traumas que não conseguem desaparecer.

Termino o café e ela ainda está com o copo pela metade. Como se quisesse dizer algo e então cria coragem:

- Trouxe comida de casa?

- Saí tão depressa de casa que acabei não trazendo nada.

- Quer almoçar comigo?

Aquela pergunta direta faz com que pare de olhar para ela. Ela insiste com o convite:

- Por que não? É seu último dia. Assim vai poder deixar o pessoal com ciúmes saindo com a secretária preferida. Então... Combinado?

Sorrio e aceito. Ela se levanta rapidamente, vai até a porta e pergunta:

- Eu sou a sua preferida também?

Fico sem graça diante da pergunta provocativa e ao mesmo tempo doce:

- É um anjo.

Melissa sorri e sai rapidamente para atender ao telefone. O convite dela mexeu de alguma forma comigo. Aos poucos o pessoal vai chegando... Miguel e Álvaro passam por mim rindo. Logo em seguida chega Oliveira:

- Bom dia, sargento Vargas.

- Bom dia.

Preparado para alguns depoimentos e algumas pastas para arquivar.

            -Seu humor é algo notório, Oliveira.

- Vargas... Lidamos diariamente com a merda dos outros. Temos que ter bom humor. Ou é isso ou é uma bala na cabeça.

Deixo a piada dele de lado e volto minhas atenções para uma pilha de anotações e depoimentos. Oliveira ajeita suas coisas na mesa ao lado e continua a conversa:

- Sabe o doido que andava atacando pelo bairro?

- Sim... Eu leio jornais. O que houve? Pegaram ele?

- Pegaram hoje durante a madrugada. Ele matou oito pessoas em menos de três semanas não é?

- Parece que são nove. Há ligações com um outro caso não resolvido mês passado. Em todos os casos a vítima foi encontrada enterrada e com a garganta cortada.

Oliveira observa a minha pilha de depoimentos para arquivar e susurra:

- Ele vem pra cá.

- O quê?

- Parece que ele vem pra cá. Houve um princípio de tumulto na central. Os presos não querem dividir cela com ele. Acham que o cara realmente é um monstro.

- Que loucura.

- Vai cumprir seu horário normalmente hoje? É seu último dia... Poderia conversar com o delegado, se despedir do pessoal e ir embora logo após o almoço. E deixar o resto da merda com a gente.

- Melissa me contou que muita gente estava achando que eu nem ia aparecer hoje.

- Podemos sair mais cedo com ela e beber um pouco para comemorar... O que acha?

- Eu não posso. Prometi a Vera que voltaria pra casa. Estamos terminando de empacotar tudo.

Oliveira muda sua expressão alegre para séria. Então pergunta:

- Como ela está?

- Melhor. Demorou um pouco mais pra ela... Para assimilar o que aconteceu.

- Mas ela está realmente melhor?

- Sim.

Miguel aparece e corta a conversa:

- Então homem velho... Que horas pretende fazer a triste despedida?

- Eu agradeço a preocupação de todos vocês, mas vou cumprir meu horário.

- Então deixe esses arquivos e coisas importantes de lado. O delegado quer vê-lo.

- Agora?

- Claro... Esse monte de papel na sua mesa pode esperar um pouco, não pode?

Deixo Miguel sem resposta e dirijo-me a sala do delegado. O nosso famoso delegado Bueno chegou a seis anos... Eu já trabalhava aqui. Veio substituir o nosso antigo delegado e grande amigo Mathias. Não posso dizer o mesmo de Bueno. Tenho certeza que essa conversa com ele não será agradável. Sei que ele não gosta de mim e eu também não gosto dele.

Antes de entrar, respiro fundo e então bato na porta. Escuto sua voz autorizando minha entrada. Entro e o cumprimento:

- Bom dia, senhor.

- Bom dia, Vargas. Sente-se.

Sento de frente para ele que termina de ajeitar sua gravata.

- Então é o seu último dia hoje, certo?

- Sim senhor.

- Incrível... Realmente incrível. Estava dando uma olhada em sua ficha. Praticamente viveu dentro da polícia.

- Sim senhor. É verdade.

- Trabalha nessa delegacia a uma década. No mesmo serviço, na mesma mesa e com o mesmo ramal de telefone.

Permaneço em silêncio enquanto ele continua lendo detalhadamente minha ficha.

- Sabe que não terá todos os benefícios saindo agora?

- Sim senhor... Sei sim.

- Vou confessar uma coisa. Não preciso perguntar o motivo de estar saindo agora. Bastou eu ler esse recorte de jornal solto em sua ficha para descobrir. Faz pouco tempo que perdeu sua filha, não é?

- Três meses, senhor.

- Deve ter sido dífícil.

- Foi sim.

Pelo jornal temos poucos detalhes. Ela voltava da praia com duas amigas quando outro carro invadiu a pista e bateu em seu carro. Apenas a amiga que estava no banco de trás sobreviveu, correto?

- Sim senhor.

- Sua filha chegou a ser socorrida?

- Sim... Ela morreu três horas depois de chegar ao hospital.

- O motorista fugiu?

- Sim senhor. O veículo que ele estava usando era roubado.

Não queria falar mais sobre o acidente. Se tivesse encontrado o motorista... Ele já estaria morto e eu talvez estivesse preso em uma cela com outros seis bandidos. Bueno guarda minha ficha em uma pasta e atira sobre a mesa. Precisaria dizer algo humano naquele momento, mas é uma tarefa complicada para pessoas como ele.

- Como está sua esposa?

- Está melhor, senhor.

- Algumas vezes os desígnios de Deus nos trazem dor.

- Sim senhor. É verdade.

- Detesto esse tipo de conversa... Detesto perder um bom policial... Mesmo sabendo que ele quase nunca saiu para as ruas ou trocou tiro com bandido.

- Senhor... Eu me orgulho em ter sido um bom policial para esse bairro.

Bueno me encara, pega o telefone e disca para alguém:

- Só passem ligação para a minha sala quando o estagiário chegar!

- Vargas... Eu respeito policiais velhos, mas não tenho paciência com molecada que dorme até tarde.

Bueno pode ser mais novo, mas é esperto e sabe a importância da figura dele para o funcionamento das coisas em nossa delegacia. Já foi premiado três vezes pelo próprio prefeito e isso não é para qualquer um... Principalmente para filhos da puta como ele.

- Eu não quero ocupar seu tempo, senhor. Eu já estou com quase tudo pronto.

- Você é o menor dos meus problemas hoje, Vargas. Lá fora existem todos os tipos de bandidos e assassinos circulando livremente e justamente hoje a central vai me trazer o pior deles.

- Eu fiquei sabendo, senhor. Oliveira me contou sobre a prisão.

- Ainda não sabemos de nada, mas depois de alguns exames eu vou saber até com quem o maldito estudou na infância.

Alguém bate na porta e Bueno manda esperar. Retoma a conversa de forma harmônica:

- Quero te pedir um favor. Nunca gostamos um do outro... Não conversamos nos churrascos e não bebemos junto. Mas quero te pedir um último favor como seu chefe.

- Sim senhor.

- Não fode comigo hoje. Você vai receber o cara e vai fazer ele assinar uma confissão por todos os crimes divulgados pela imprensa. Não importa o nome que ele vai dar e a garantia que ele vai pedir... Ele vai assinar e essa merda termina hoje. Entendeu?

Não digo nada. Penso em devolver o elogio, mas mantenho a calma. É ele quem continua:

- Preciso que faça isso, Vargas. Apenas isso... Mais nada. Pode sair agora.

Abro a porta e encontro o estagiário assustado como se estivesse escutado toda a conversa. Volto a minha mesa e retomo o serviço. Oliveira aparece curioso:

- Como foi a conversa?

- Amigável.

- Vão trazer o cara no início da tarde. Se eu fosse você dava uma volta, botava a cabeça no lugar, almoçava e então voltava para encarar o preso.

- Talvez almoce com Melissa. Não pretendo sair agora.

- Vai sair com Melissa?

- Ela me convidou para almoçar.

- Vargas... Tudo começa com um almoço, sabia?

- Eu sou um homem casado, Oliveira.

- Eu sei disso. Estava apenas brincando.

- Deu para perceber.

- Olha...Você terá que entregar sua arma. Um rapaz da central vem buscá-la. Talvez venha agora de manhã ou talvez venha de tarde.

- Eu mesmo tenho que entregar?

- Sim... Precisa da sua assinatura no formulário. Quem dita o ritmo das coisas em nosso país é a burocracia.

Oliveira volta para sua mesa. Olho para a minha e não sei nem por onde começar. Melissa passa por nosso setor sorridente como sempre. Miguel vai atrás dela feito um verdadeiro idiota. Começo a pensar em Vera. Penso no quanto ela ficaria feliz em me ver chegando agora em casa. Mas também penso em Melissa. O que poderia dizer pra ela durante o almoço? O que fazer? Talvez aceitasse a idéia de Oliveira. Sairia daqui mais cedo. Bueno não precisa de mim para fazer um homem assinar sua confissão. Deixaria um recado para Melissa ou até ligaria para ela avisando que surgiu algum imprevisto. Mas que imprevisto? O que realmente dizer? Meus pensamentos são interrompidos com o telefone.

- Alô.

- Vargas... É o Álvaro. Sei que está ocupado, mas pode atender uma senhora pra mim? Tentaram assaltar ela, mas não chegaram a levar nada. Ela insiste em prestar uma queixa.

Percebo Melissa voltando ainda seguida por Miguel.

- Passe o rolo para Miguel. Ele está passeando pelo prédio ao invés de trabalhar.

- Sério?

- Sim. E diga que eu sugeri o nome dele.

- Ele vai adorar. Deixa comigo.

Desligo com um sorriso no rosto e retomo novamente o serviço. Decido parar de pensar um pouco em Vera e Melissa para me concentrar no trabalho... Mas não consigo. A manhã vai se arrastando e junto com ela os meus pensamentos. Não consigo trabalhar normalmente. O barulho ao meu redor já começa a atrapalhar... Coisa que a anos não acontecia. Passam-se duas horas e continuo com a mesa lotada de coisa. Dá a impressão de ter trabalhado apenas uns vinte minutos. Queria estar ajudando Vera na mudança e ao mesmo tempo a ansiedade aumenta em ver Melissa na hora do almoço. O convite dela realmente despertou algo dentro de mim. Largo momentaneamente aquela papelada por toda a mesa. Levanto e vou atrás de café. Passo pelo corredor e tento ver Melissa. Sua mesa está vazia... Sigo em direção à sala do café. Álvaro e Miguel estão lá. Evito a conversa... Principalmente com Miguel que deve estar louco para me dar o troco. Encho meu copo de café e volto para minha mesa. O barulho aumenta, mas agora é diferente. Vem da rua... Forte e turbulento. Vou até a janela e conto cinco viaturas nossas. Oliveira surge apenas para confirmar o que já presumia:

- O nosso preso chegou.

- Trouxeram cedo.

- Acho que quiseram despistar a imprensa e conseguiram despistar até a gente.

- Acha que vão pedir para começar agora?

- Provavelmente sim.

Já cogitava a possibilidade de ir embora, mas queria ver Melissa... Precisava falar com ela. Bueno sai de sua sala acelerado e reclama algo com o estagiário. Vou até o corredor e tento achar uma visão privilegiada de tudo. Vejo doze homens armados e o preso. Bueno conversa com um policial e continua nervoso. Tento observar ao máximo o nosso suspeito. Tudo é válido e também facilita o trabalho de um policial. Não consigo ver muito, mas é notório que é um homem alto... Um homem branco que deve ter no máximo 35 anos de idade, cabelos castanhos e olhos bem negros. Sem tatuagens visíveis, brincos, olheiras ou alguma marca que pudesse rotulá-lo como algum doente perturbado ou ainda drogado. Aparentemente dá a impressão de ser o mais calmo de todos os homens presentes na recepção. Bueno volta para a sua sala me encarando. Escuto ele fazer uma ligação curta. Sai já com a ordem pronta e que já estava pronto a receber:

- Deixa tudo preparado na sala. Quero terminar isso antes do almoço e despachar ele para longe daqui.

Bueno também manda Oliveira me ajudar. Temos em nossa delegacia apenas duas salas destinadas a situações como essa. Situações envolvendo depoimentos, interrogatórios e confissões dos piores tipos de crimes já praticados pelo ser humano. Dependendo da pessoa o processo é rápido... Ainda mais com Oliveira ajudando. Talvez pudesse deixar tudo com ele e sair mais cedo. Organizo a mesa enquanto Oliveira checa a imagem da câmera instalada no teto. Alguém bate na porta, Oliveira abre e então Bueno e um oficial entram. É o nosso delegado quem faz a apresentação:

- Comandante Freitas... Estes são os homens que vão cuidar do suspeito. Felipe Oliveira e o meu perito nesse tipo de assunto... O sargento Vargas.

Sinto o deboche por parte de Bueno, mas ele é menor do que de costume. Percebe-se que continua tenso e a maneira e o ritmo como que ele está conduzindo tudo isso pode ser prejudicial.

Terminada toda a formalidade de apresentações pergunto quando o depoimento do suspeito teria início. Freitas responde que imediatamente. Oliveira então pergunta:

- Como aconteceu a prisão? Onde o encontraram?

- Não houve um processo de busca e prisão.

- Como assim?

- O suspeito foi até uma delegacia afirmando ser o responsável pelos crimes. Foi encaminhado para a nossa central onde houve um princípio de tumulto entre os presos. Trouxemos ele pra cá e os senhores farão o registro de tudo.

Bueno entrega a ficha do preso para Oliveira e acompanha o comandante até a porta. Ficamos então sozinhos na sala... Aos poucos começamos a ouvir o barulho dos degraus da escada. Presumimos que começará logo... Conforme deseja o nosso delegado. Oliveira me passa a ficha como se pedisse para começar e ser o responsável pelo andamento das coisas... Algo que eu não queria naquele dia.

A porta é aberta novamente... O preso entra seguido por dois policias. Eles o amarram completamente na cadeira... A única coisa que consegue movimentar é o seu pescoço. Ainda permanece ou aparenta um aspecto de tranqüilidade. Os olhos estão mais negros que antes. A calma insana e o seu silêncio começam a fazer efeito sobre Oliveira. Sento de frente para ele enquanto Oliveira permanece de pé. Quando os policias saem eu começo o que definiria como apresentação:

- Bom dia. Sou o sargento Vargas e este é o investigador Oliveira. Sabe o motivo de estar aqui?

- Sim.

Abro sua ficha e percebo que ele observa a sala atentamente... Cada mínimo detalhe.

- Vou tornar as coisas rápidas para você, por isso pediria que respondesse apenas o que pergunto.

- Por que não há janelas aqui?

- Estamos em uma sala de interrogatório. Não há necessidade em apreciarmos a vista. Eu peço novamente que responda apenas o que perguntar. Posso continuar?

- Sim.

- De acordo com a ficha que recebi... Seu nome é Júlio César Lima. Natural de Porto Alegre e completou 34 anos mês passado. Você pode me confirmar tudo isso?

- Sim.

- Sabe o motivo de estar aqui?

- Posso pedir um favor, sargento?

Oliveira responde:

- Apenas diga sim ou não para cada pergunta.

Ambos se encaram naquele momento. O fato de aquele homem estar completamente imobilizado não o torna menos aterrorizador.

- Não há necessidade disso. Queria apenas pedir um favor. Estou preso... Não posso fazer nada.

- Já chega! Se não ajudar será posto em uma cela com outros presos tão ruins como você e talvez tenha que dividir a ração com eles.

Percebo que Oliveira está nervoso e retomo com o interrogatório:

- Seu nome é Júlio César Lima. Natural de Porto Alegre e completou 34 anos no dia 13 do mês passado. Você pode me confirmar tudo isso?

- Sim.

- Sabe realmente o motivo de estar aqui?

- Sim.

- Você está sendo acusado pelo assassinato de oito pessoas e o desaparecimento e provável assassinato de um jovem mês passado. A perícia ainda não conseguiu encontrar provas que ajudem na identificação do criminoso. Pode me dizer se é o responsável pela morte dessas pessoas.

- Não matei o garoto.

- Pode repetir?

- Não matei o garoto que sumiu.

- Você confirma que é o responsável pela morte dessas oito pessoas?

- Posso lhe pedir um favor, sargento Vargas?

Que tipo de favor?

- Gostaria que soltasse um pouco a corrente no meu pulso. Os policiais quase o quebraram quando me prenderam aqui.

Oliveira ataca:

- Sem chances! Apenas responda a pergunta!

- Policial... Estou totalmente imobilizado. Mesmo que seja realmente um doido ou mentalmente perturbado... Não posso fazer nada. Só estou pedindo para examinarem meu pulso porque está doendo e não consigo pensar direito.

Peço para Oliveira sair e providenciar alguém que examine o pulso do preso. Não precisaria fazer isso. Bueno deve ter providenciado, pois acompanha tudo pelo monitor, mas a irritação de Oliveira pode atrapalhar o andamento das coisas.

Aguardo sentado de frente para aquele homem. Passam-se quase dez minutos e nada de Oliveira voltar... Muito menos alguém aparecer para examinar o suspeito. Olho para o relógio já preocupado e desejando que aquilo termine logo. É a vez do interrogado me perguntar:

- Algum compromisso para o almoço?

- O quê?

- Perguntei se tem algum compromisso mais tarde?

- Talvez.

- É o seu último dia como policial, não?

- Como sabe disso?

- Durante o trajeto ouvi alguns policiais comentando. Dizem que você é o melhor... Apesar de estar velho. E hoje é o seu último dia por aqui.

- Sim é o meu último dia.

- Fico feliz em saber que serei o seu último interrogado.

Aquela voz e aquele tipo de conversa já começava a me afetar também. Levanto-me impaciente e vou até a porta. Finalmente alguém aparece para examiná-lo. Miguel também entra e pede que vá conversar com Bueno. Caminho pelo corredor tomado de policiais e vou até a sala de Bueno. Ele não tira os olhos do monitor e não fala nada.

- O senhor queria falar comigo?

- Mandei Oliveira embora. Ele estava me deixando nervoso.

Concordo com a idéia dele. Nervosismo apenas atrasa as coisas.

- Encontramos uma testemunha e isso vai ajudar bastante. Você vai voltar lá depois improvisarem algo no braço do desgraçado. E vai fazer ele assinar a confissão. E toda essa merda termina hoje.

- Deixo nosso delegado e volto a sala de interrogatórios. O tempo passa e o exame continua... Parece que realmente quebraram o pulso dele. Não encontro uma explicação para terem feito isso... O homem nunca reagiu a nada desde que chegou aqui. Confiro o relógio novamente e já está na hora do almoço. A ansiedade em ver Melissa me destrói por dentro. Desço as escadas apressado e vou até a recepção atrás dela. O estagiário me informa que ela foi almoçar sozinha para não me atrapalhar no trabalho. Guardo o sentimento de frustração e volto para a sala onde está o preso. O estagiário me alcança e diz que um policial veio buscar minha arma.

- Agora não posso. Mande-o esperar.

O tempo não importa mais agora. Subo as escadas e chego até a sala onde um médico imobiliza o pulso do preso. Sento de frente para os dois. Agora não há motivo para pressa ou olhar tanto para o relógio. Queria estar com Vera, mas queria ter visto Melissa pela última vez. Queria acreditar que Daniela não tivesse sofrido tanto antes de morrer. Escuto algo do preso, mas não consigo me concentrar no que ele diz. Ele repete:

- Sinto muito.

- O quê?

- Eu sinto muito.

- Por quê?

- Por ter estragado seu almoço.

Aquele homem ali parecia adivinhar o que passava por minha cabeça. Como se minha mente sussurrasse em seu ouvido todos os meus demônios interiores. Aquele preso não devia estar aqui. Eu também não devia. Queria estar com Vera, queria Melissa e queria minha filha de volta.

O médico sai e ficamos sós... Apenas ele e eu. Tranco a porta, abro a minha pasta, pego uma folha e sento ao seu lado.

- Pode assinar sua confissão, por favor?

Não há reação naquele homem. Nenhuma queixa ou negação. Ele simplesmente pega a caneta e assina para talvez o alívio de Bueno vendo tudo no monitor.

Agradeço e guardo aquele papel que provavelmente o mantenha preso até a morte.

- Eu assinei pelas mortes noticiadas, correto?

- Sim... Não será julgado pelo desaparecimento que mencionei antes.

- Acharam o motorista que bateu em sua filha?

Existem coisas que não desejamos ouvir. Coisas que não nos fazem pensar... Apenas agir.

- O que disse?

- O motorista. Ele foi preso depois que sua filha morreu? Só se fala em você por aqui. Dizem que você está saindo por causa disso... É verdade?

- Por que me pergunta isso?

Porque o estagiário lhe pediu para entregar sua arma antes de entrar aqui, mas você não o fez. Por que voltou armado e trancou a porta?

- Do que diabos está falando?

- Poderia ter entregado a arma. Jamais saberia se eu fosse realmente o responsável pelo acidente. Aí que surge minha dúvida. Por que entrou armado?

Alguém bate na porta. Escuto Bueno me ordenando que abra. Já não consigo pensar direito. Não há mais lógica nas coisas.

- Você matou minha filha?

- O que quer que eu diga? Foi um acidente de trânsito.

Aquele tom de voz, aquela calma e frieza me contaminam. Aquele homem não devia estar ali. Atiro uma cadeira contra a parede, saco minha arma e pergunto:

            - Você matou minha filha?

- Não. Não estava na cidade, Vargas.

Percebi na hora que aquele homem falava a verdade. Ajoelho-me e lágrimas correm pelo meu rosto. Uma sensação de vergonha e ao mesmo tempo de frustração crescem dentro do meu peito. Bem que poderia ser aquele homem diante de mim o responsável por ter me tirado uma filha e por ter me deixado uma esposa doente. Bueno esmurra a porta violentamente aos berros. Estou sem forças para me levantar e sem coragem de encarar um homem algemado que continua com seu diálogo:

- Não matei sua filha. Talvez nunca peguem o responsável. Mas se você quiser... Assumo isso por você. Assumo ser o responsável pelo acidente, por você não estar em casa agora e por ter perdido o almoço com alguma colega de serviço.

Agora já encaro aquele homem. Levanto do chão ainda com a arma.

- Vargas... Foi esse o motivo da pressa? Ia sair com alguém daqui? Na verdade vi poucas mulheres nessa delegacia. A única que me chamou a atenção foi uma ruiva na recepção. É linda como um anjo e eu até seria capaz de trair minha esposa com ela... Se fosse um homem casado, claro.

- Tem idéia do que acabou de me dizer?

- Quero apenas pedir desculpas por tudo. Antes que você use a arma e antes que arrebentem a porta.

Não havia mais nada lógico nas coisas, não conseguia mais raciocinar. Estava em um inferno. O inferno não é alguém ardendo em fogo eterno e sim a impossibilidade de raciocínio. Não há Bueno e nem leis naquela sala. Apenas ele e eu. O armado e o desarmado. O bom e o mau. Que então deixem o homem ser o carrasco do próprio homem. Aponto minha arma para ele, enxugo minhas lágrimas e sorrio:

- Talvez você esteja certo.

- Dou quatro tiros naquele homem algemado, a porta é arrombada e sinto algo forte me acertando na cabeça. Alguns segundos de dor, tontura e em seguida o sono. E ali terminou meu último dia.

Horácio



Horácio
Márcio Chacon


Horácio era um homem tímido e de olhar triste. Mas ao mesmo tempo era um indivíduo notoriamente inteligente e organizado em tudo que fazia. Um exímio contador e exemplo de profissionais muito elogiados e invejados em sua área. Ele também era um homem humilde... Nunca se vangloriou por tamanhas virtudes e sempre exaltava o trabalho em grupo. Horácio vivia só e fugia freqüentemente dos convites de amigos para se aventurar na noite e desfrutar dos prazeres que ela lhe ofereceria. Também nunca se perdeu para qualquer tipo de vício ou algo que pudesse denegrir sua imagem de homem bom. Talvez seu único defeito fosse sua preocupação um tanto quanto demasiada em deixar as coisas organizadas e conseqüentemente concluídas. Talvez este tenha sido o motivo para terem o encontrado sentado na cama com um tiro na cabeça e um bilhete em sua mão com o seguinte pedido: “Peço humildemente para quem ler isso e perceber que ainda respiro... Que atire de novo”.

sábado, 22 de outubro de 2011

A Folga


A Folga
Márcio Chacon

Homens bons vão para o céu. Homens maus vão para qualquer lugar...

Não devia estar aqui. Não devia ter atendido o telefone. Hoje era minha folga e que culpa eu tenho se o imbecil do Bruno arrebentou a perna jogando bola? Eu devia era ter ficado na cama deitado com ela. Espero que ela entenda, espero que leia o bilhete em cima da mesa. Atendi porque foi Felipe quem me ligou e pediu que viesse. E se ele me chamou sei que deu alguma merda. Quando me apresentei não me esclareceram direito do que se tratava... Basicamente era uma operação padrão de prender um suspeito de homicídio que estaria escondido na Vila Mariana.

Droga... Estou nervoso e a medida que o tempo passa dentro do camburão o nervosismo só aumenta. Alguém chama pelo rádio e Felipe atende. Não consigo ouvir a conversa, mas é curta. Ao todo são seis homens dentro do camburão. Além de Felipe e eu... Marlo, Garcia, Guilherme e o borrado do Maurício. Difícil de acreditar que ele está junto com a gente. Na verdade Maurício é o maior e mais forte do grupo, mas também o maior covarde. Desde que entrou para essa vida nunca trocou tiro com bandido. É sempre o último a entrar e o primeiro a sair... Para piorar começou a ser zoado por causa do surgimento de uma barriga. Tirando ele, todos os demais são experientes nesse tipo de operação. Na verdade Felipe reuniu o melhor ou o pior da unidade. Todos aqui são conhecidos como matadores de bandidos... O que é verdade. O problema é o exagero que usam para nos definir. Já troquei tiro e já matei muito bandido sim...e nunca me arrependi. Se eles forem homens bons... Talvez sejam perdoados. Isso vai depender da conversa deles com Deus. Eu apenas marco o encontro.

Maurício confere a arma pela terceira vez... Guilherme dá um sorriso como deboche. A fama do grupo cresceu muita por causa dele. Guilherme talvez seja o maior matador de bandido em atividade... Um verdadeiro executor. Já foi baleado duas vezes e continua com a gente. Dizem que fez um pacto com as trevas e agora é imortal. Só vai morrer quando atingirem a sua cabeça. Particularmente odeio essas histórias que criam em cima da gente...mas Guilherme assusta qualquer um... E ele sabe disso.

Garcia permanece o tempo todo de olhos fechados como se estivesse meditando. Marlo está sério. Eu e ele começamos juntos. Ficamos muito amigos, mas desde que surgiu a famosa lista negra ele mudou um pouco. Dias atrás circulou uma lista na imprensa de policiais corruptos e meu nome estava nela. Ainda não me corrompi e sei que meu nome apareceu por vingança. Desde então não consegui conversar direito e explicar tudo pra ele.

De longe já se enxerga a entrada da vila. Outra viatura nos espera. Paramos ao lado dela. Todos desembarcamos e Felipe vai a direção da viatura. O vidro do banco de trás abre e então um rosto bem conhecido inicia um diálogo com Felipe. Marlo parece perceber que estou sabendo poucos detalhes da história:

- O que te contaram?

- Pouca coisa. Um suspeito de homicídio foi localizado aqui e então me ligaram.

- Não houve homicídio.

- Como assim?

- Pelo que sei foi uma tentativa de assalto. Um marginal tentou assaltar o filho do nosso antigo comandante. Tentou levar a moto dele, o garoto reagiu e levou um tiro na perna, mas passa bem.

- E o nosso antigo comandante está naquele carro conversando com o Felipe? Planejando alguma vingança?

- Possivelmente.

- Ele não está apoiando um forte candidato para a prefeitura?

- Parece que sim.

- Imagina a merda que isso vai dar se vazar.

Garcia se aproxima e então pergunta:

- O que pretende fazer?

- Vou entrar lá, prender o cara e trazer ele pra cá. Da maneira mais calma possível e sem troca de tiro. Espero que Felipe tenha a mesma idéia.

Guilherme passa por nós com cara de deboche. Felipe também aparece para dar as primeiras instruções:

- Nós vamos entrar, capturar o suspeito e trazê-lo aqui pra baixo. Depois vocês estão liberados.

- Como assim liberados?

- Escuta... Não complica agora. Tenta fazer o que sempre fez. Parece que aquela maldita lista te abalou de vez.

- Felipe... Sinceramente o que vai acontecer depois? O comandante terá uma tão sonhada vingança?

Guilherme então ataca:

- Não contraria as ordens seu bosta.

Explodo por dentro de raiva e então Felipe me puxa:

- Segue o Guilherme e o Garcia. O restante do grupo estará logo atrás.

Seguro a raiva e então vou atrás dos dois que já estão no portão de entrada. Estou nervoso demais e para piorar os corredores são estreitos. Se aparecer um maluco atirando com certeza acerta alguém.

Guilherme sobe acelerado e toma certa distância. Passo por Garcia e faço sinal para ele maneirar. Não adianta... Ele continua avançando. Está escuro demais e quase não se enxerga os degraus.

Guilherme faz um sinal. Parece ter avistado o barraco onde o suspeito estaria escondido. Alcanço Guilherme e em seguida aparece Felipe. Ele faz um sinal e Guilherme entra. Vou logo atrás. Está uma escuridão total e Guilherme logo desaparece. Continuo nervoso. Na verdade... Desde que a conheci comecei a ficar com medo da morte. Desde o nosso primeiro encontro, do nosso primeiro café... Tudo mudou. Queria estar abraçado com ela agora, mas estou aqui... Numa escuridão que assombra. Avanço pela sala e uma pequena luz se acende. Entro e encontro Guilherme e um garoto sentado na cama... Parece que estava dormindo. Deve ter uns 12 ou 13 anos no máximo.

- Guilherme... Não é ele. Vamos voltar e avisar o Felipe que a informação era falsa.

- Espera. Vamos conversar um pouco com o moleque. Talvez ele saiba de alguma coisa.

- Eu não sei de nada não.

Guilherme guarda a arma e tira uma faca da cintura... Então volta a encarar o garoto.

- Como se chama moleque?

- Pedro.

- Pedro? Nome bonito... Nome bíblico. Acredita em Deus, Pedro?

- Sim.

O garoto treme. A presença de Guilherme é aterrorizante.

- Pedro... Escuta uma coisa. Deus está muito longe agora... E fica difícil Dele tentar te ajudar. Então eu pediria que contasse tudo que sabe... Porque senão eu vou te machucar, vou te machucar bastante.

- Eu não sei de nada não.

Guilherme não espera outra resposta e esmurra o rosto do garoto que deita na cama. Ele força o garoto aterrorizado a se sentar e põe a lâmina da faca em seu rosto:

- Pedro... O mundo é um lugar bom. O problema é que existem pessoas muito, muito malvadas. E eu sou a pior delas. Então pode me dizer onde o merda está?

O garoto entra em pânico, chora, treme assustado, mas não diz nada. Guilherme não espera muito tempo então faz um corte fundo no rosto do garoto, que grita e chora provocado pela imensa dor.

- Guilherme... O que diabos está fazendo?

- Não se mete nisso. Chama o Felipe. O moleque vai contar tudo.

Saio da sala meio sem reação. Preciso passar pela escuridão de novo e encontrar Felipe. Avisá-lo que Guilherme surtou. Ao cruzar pela sala tropeço em algo e caio. Ao levantar-me vejo Felipe na minha frente. Parecendo que estivesse ali o tempo todo. Acompanhando tudo escondido na escuridão. Volto com ele até o quartinho. O garoto está com o rosto completamente pintado de sangue. Guilherme me ignora e fala com Felipe:

- O moleque disse que ele foi encontrar um tal de Branco.

- Onde podemos achar esse Branco?

- Subindo três escadarias, o primeiro barraco à direita. Tem uma bandeira grande do Inter na janela.

Preciso fazer algo, dizer algo:

- Felipe... Vou descer com garoto e levá-lo a um hospital.

- Não precisa nada disso. Eu cuido do garoto aqui.

Felipe percebe que me irritei com as palavras de Guilherme então evita uma discussão:

- Todos vamos subir... Inclusive o garoto. Vou pedir para o Garcia improvisar algo no rosto dele.

Logo que saímos do barraco alguém chama Felipe pelo celular. Sei que a notícia não é boa. Felipe desliga o celular e vai direto ao assunto:

- Parece que algum morador avisou uma emissora de televisão. O comandante está indo embora. Vamos terminar essa merda logo e ir embora também.

Todos escutamos em silêncio e continuamos a subir pela vila. Está escuro demais e estão todos tensos... Com exceção de Guilherme, que parece estar gostando do momento.

Em questão de minutos avistamos o barraco. Felipe olha pra mim como se tentasse dizer que agora não será a minha vez. Ele manda Marlo e Garcia entrarem. Ficamos no lado de fora... Felipe, Guilherme, Maurício, o garoto e eu. Guilherme não tira os olhos do garoto... Realmente não vai querer descer com ele vivo da vila. Para piorar Felipe está ignorando toda essa insanidade de Guilherme e parece concordar que o garoto não pode sair vivo dali. A reputação e a integridade do batalhão estariam arruinadas só de se ficar sabendo que um de nós torturou um menor covardemente. O grande problema ali sou eu. Entre dois homens e um garoto com o rosto cortado está outro homem que não quer matar ninguém essa noite. Quer apenas voltar pra casa e ver o rosto de sua amada novamente.

Deus... Como o tempo demora quando a morte passa a nos rondar. A questão para Guilherme é simples. Ele atiraria em mim e depois no garoto. O meu caso é mais complicado. Preciso ser mais rápido, atirar primeiro nele e depois em Felipe, que com certeza vai atirar em mim. Não posso contar com a ajuda de Maurício. Ele está mais borrado que o garoto. Ficamos todos em silêncio, de armas na mão... Apenas esperando uma mínima reação de alguém. Então Garcia aparece:

- Achamos o cara. O Marlo já o algemou.

Felipe e Garcia entram no barraco. Guilherme me olha com mais um sorriso debochado, volta a encarar o garoto e entra também no barraco. Entro logo em seguida. Maurício fica do lado de fora com o garoto.

Pelo menos há luz nesse barraco. Felipe liga para alguém do seu celular. Mais adiante está Marlo com o sujeito algemado e de joelhos. Felipe mal conversa e desliga o celular. Imediatamente chama o Maurício. Guilherme guarda a arma e pega a faca de novo.

Maldita ligação telefônica, maldita pessoa que colocou Felipe no comando.

Maurício passa por todos suando como um porco e vai até ele. Felipe o encara então fala algo que jamais conseguirei apagar de minha mente. Uma frase curta, mas de um impacto cruelmente insano:

- Atira nele!

Maurício fica sem reação diante de tal ordem:

- O quê?

- Pega a tua arma e atira nele!

Maurício treme, aponta a arma em direção ao suspeito, mas não consegue. Se ajoelha e chora como uma criança. Preciso fazer algo:

- Felipe... Um tiro agora pode provocar uma reação enorme. Estamos dentro do verdadeiro inferno.

- Não precisamos atirar nele. Se quiser eu corto o maldito e depois termino de cortar o garoto.

Felipe pega a arma de Maurício e manda Guilherme se controlar. Em seguida olha pra mim e diz:

- Foda-se.

Então ele dá três tiros no homem algemado pelas costas.

- Entendeu agora Maurício? O que tem que fazer? Seu bosta. Ajuda o Garcia a carregar o corpo agora.

Minha preocupação depois daquela execução era a conseqüência. Tenho certeza que mexemos num vespeiro.

- Felipe... Acho melhor alguém ir lá fora dar uma olhada e depois todos sairmos daqui rapidamente.

- Eu faço isso, mas primeiro vou terminar de cortar o garoto.

Aponto minha arma em direção a Guilherme:

- Acabou velho. Larga a faca.

Guilherme não larga e continua em direção ao garoto.

- Felipe... Eu vou atirar nele!

- Ninguém vai atirar em ninguém aqui.

As palavras de Felipe vieram como uma espécie de maldição. Do lado de fora escuto quatro disparos. Guilherme e Marlo são atingidos. Garcia e eu vamos para as janelas, mas não avistamos ninguém. Marlo se levanta, a bala parece ter atingido o colete. Guilherme continua deitado numa poça de sangue. Garcia então grita para Felipe:

- Acho que é apenas um atirador.

- Então vai checar com o Marlo!

Seguro Garcia e peço para ir em seu lugar. Olho para o Marlo e então corremos cada um para um lado. O sorteado sou eu. Levo dois tiros no peito tão fortes que parecem ter rasgado o colete. Tento seguir em frente e levo outro tiro na altura do ombro... Mais doloroso que os anteriores e então caio. Marlo se esconde atrás de um casebre e grita algo. Não consigo entender... A dor é grande demais, estou tenso e não sei se o colete agüentou. Tento mesmo deitado localizar a origem dos disparos. Espero um, dois e no terceiro tiro localizo o atirador em cima de um telhado de outro casebre. Preciso avisar o Marlo, mas como? Então alguém começa a trocar tiros com o atirador localizado. Para minha surpresa é Guilherme que passa por mim caminhando completamente ensangüentado e atira contra o bandido. Ele dá três disparos... Dois são certeiros e matam o atirador. Em seguida recarrega a arma e se vira pra mim. Não sei se com a intenção de me ajudar ou me executar. Jamais ficarei sabendo, pois outro disparo vindo do outro lado atinge seu rosto fazendo cair ao meu lado. Guilherme está morto agora. A imortalidade não passou de uma história para assustar bandido. Marlo e Garcia localizam o segundo atirador e disparam contra ele. Aproveito o momento e me levanto e me escondo atrás de um muro. Esse segundo atirador está duas casas adiante. Se agüentar a dor e passar pelo muro terei alguma chance. Descanso um pouco durante o intervalo do tiroteio e quando ele reinicia pulo o muro e corro para trás dos casebres. A questão agora é localizar o casebre certo. Minha tarefa fica facilitada pelos disparos. Avanço duas casas e entro na terceira. Devagar e silenciosamente. A televisão está ligada e não há ninguém. Mas escuto alguém em cima do telhado. Não consigo pensar em algo inteligente e então descarrego minha arma no telhado mesmo. Alguém cai. Saio do casebre e vou para os fundos e vejo um homem de cabelos grisalhos gravemente ferido... Possivelmente o Branco. Chego ao lado dele e percebo que ele não vai resistir muito. Não vejo motivo em dizer algo naquele momento. Aponto minha arma e dou mais um tiro nele. E espero que seja o último nessa noite.

Volto para dentro do casebre. Preciso de um espelho. Preciso ter certeza que nenhuma bala passou pelo colete. Escuto a voz de Felipe do lado de fora... Ignoro. Vou até uma peça funcionando como um banheiro improvisado e acho um espelho. Examino o colete detalhadamente e conto três cápsulas alojadas nele. Essa noite eu escapei. Preciso voltar pra casa.

Saio do barraco e vejo Felipe recebendo o reforço... Na verdade mais um pequeno grupo com quatro homens. Felipe então me pergunta:

- Matou o outro atirador?

- Sim.

- Chamei um pessoal que estava por perto.

Estou nervoso demais com ele. Minutos atrás quase atiramos um no outro e agora conversamos normalmente.

- Por que só agora pediu ajuda? O que te prometeram? O que o comandante disse no celular?

- Todos do nosso grupo sairão da lista negra.

- Do nosso grupo tem apenas o meu nome na lista. Não vai me dizer que fez tudo isso para me ajudar? O que te prometeram?

Felipe me encara e então responde:

- Serei promovido. E não vou mais precisar caçar bandido em vilas sombrias. Nunca mais.

- Espero não trabalhar mais contigo.

Felipe sorri, me dá as costas e responde:

- Não vai.

Observo Garcia e Maurício descendo com o corpo de Guilherme. Marlo está com o garoto. Apresso o ritmo e alcanço os dois. Preciso conversar com ele:

- Como está?

- Aquele tiro que levei raspou no meu ombro. Vou ter que levar uns pontos... Nada demais. Assim como o garoto também vai precisar.

Estamos quase na saída da vila quando Felipe avisa para ninguém dizer nada caso alguma emissora esteja esperando. Quando saímos tem um carro de reportagem e uma ambulância a nossa espera. Felipe vai de encontro ao carro de reportagem e eu sigo Marlo e Pedro até a ambulância. O garoto parece mais calmo e então digo algo que nunca pensei em dizer a alguém:

- Pedro... Não vai precisar se vingar. O homem que te cortou está morto.

Um enfermeiro deita o garoto na maca impedindo que ele me desse uma resposta. Precisava de uma resposta... Para terminar tudo isso e voltar pra casa.

Marlo volta e me olhar como olhava antes e então diz o que precisava ser dito naquele momento:

- Somos homens maus.

- Talvez. Mas ainda não me corrompi.

- Eu sei.

As palavras de Marlo vieram como uma espécie de cura para minha dor interna. A ambulância é fechada e logo deixa a vila. Felipe entra na viatura do grupo que veio como reforço. Não sei o que vai aparecer no relatório amanhã. Não quero pensar nisso agora. Garcia me chama para irmos logo embora.

Antes de entrar, percebo uma repórter se aproximar e iniciar um ataque:

- Boa noite.

- Boa noite.

- Pode me dizer o seu nome?

- Ângelo.

- Ângelo... Poderia me dizer o que aconteceu exatamente aqui?

- Acho que meu superior explicou claramente para vocês. Perseguimos um suspeito até aqui, houve troca de tiros, três suspeitos e um colega nosso foram mortos. Em compensação conseguimos salvar um menor.

- Ângelo... Há alguma ligação envolvendo um famoso e antigo comandante de vocês nessa operação? Isso poderia abalar o resultado das eleições.

- Desculpa, mas em qual programa isso será transmitido?

- Meu nome é Marta e trabalho para um famoso canal de reportagem.

- Não tenho tido muito tempo para televisão.

- Queria avisá-lo que estamos ao vivo e os telespectadores estão assistindo esse deboche de casa.

- Está ao vivo?

- Sim.

- Bom... Então vai à merda e não me incomoda mais. Acho que o pessoal em casa vai gostar disso.

Deixo aquela mulher sem graça diante da câmera e entro no camburão. Maurício dá a partida e então vamos embora. Vou à frente com ele. Garcia vai sentado atrás e volta a fechar os olhos. Agora eu sei que ele está rezando.

Durante o caminho, peço para Maurício me deixar num ponto de táxi. Ele pára e então me despeço dele e de Garcia. Entro no primeiro táxi que enxergo e pego o caminho de casa.

O táxi me deixa em frente ao prédio. Há um silêncio na rua. Entro no prédio e subo as escadas apressadamente. Abro a porta do apartamento e vou até o quarto. Ela está deitada virada de costas pra mim. Vou até a cozinha e vejo o bilhete meio amassado... Conseqüentemente foi lido. Tiro o colete devagar, o peito continua dolorido. Amanhã de manhã vou visitar o garoto no hospital e já posso aproveitar e fazer um exame mais detalhado.

Tomo um banho frio, rápido e volto para o quarto. Ela não se mexe e não diz nada. Lá fora um carro começa a fazer um barulho enorme. Deito ao seu lado sem dizer nada. Talvez devesse conversar com ela... Mas estou cansado. Ela então se vira pra mim e me abraça. Fico com vontade de chorar e contar tudo... Mas estou realmente cansado. Aos poucos o carro vai tomando distância, o barulho vai diminuindo e o sono vai chegando. Então durmo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O Atirador



O Atirador
Márcio Chacon


O prédio é velho e os degraus barulhentos. Ouvi falar que daqui a alguns meses será demolido pela prefeitura para a construção de um shopping. Se pretendem valorizar o bairro deveriam refazê-lo por completo. Destruir tudo e começar do zero.

A medida que vou subindo por aquelas escadas sombrias o fedor vai aumentando. Vagabundos, drogados e prostitutas provavelmente também usem os corredores como seus banheiros particulares.

Chego ao terraço e aspiro ar fresco novamente. Largo a bolsa no chão e fico admirando toda a beleza de vista que o terraço me oferece. O dia está bonito... Ainda é cedo, mas o armazém já está aberto. O velho sempre abre cedo. Tiro o rifle da bolsa e o posiciono como havia preparado ontem. Aos poucos se percebe uma certa movimentação ao redor do armazém. Decido esperar um pouco mais. Encho um copo com o café já frio e abro um pacote de biscoito.

Passam-se vinte minutos e já tenho o que definiria como opção ou alternativa. O que mais me excita nesse serviço é a capacidade que temos na improvisação. Basta saber trabalhar com o que tem. Tendo uma boa pontaria... O silenciador faz o resto pra você.

De longe percebo uma mulher estacionando seu carro. Guardo o pacote de biscoito enquanto espero ela descer do veículo. Antes de trancá-lo com o alarme recebe o meu primeiro tiro. Ele é certeiro... Direto em sua nuca. Um ciclista que estava passando larga a bicicleta na rua e corre em sua direção. Acerto suas costas... O impacto da bala é tão forte que o derruba na hora. Tenta gritar por ajuda e se arrastar até a calçada... Neste momento desfiro outro tiro nele. O pessoal começa a sair de dentro do armazém. Acerto o rosto de uma mulher que carregava várias sacolas com frutas. Já consigo enxergar o velho pelo vidro. Atiro e a bala faz aquele vidro se despedaçar diante daquele homem totalmente amedrontado.

Já escuto o barulho da polícia. Guardo o rifle na bolsa e desço os degraus rapidamente. O cheiro e o barulho não importam mais. Saio pelos fundos quase na parada do ônibus. Entro no 145... Ele vai me deixar umas cinco quadras de casa, mas não posso ficar rondando pelo bairro a pé. Pago o cobrador e passo pela roleta cuidadosamente evitando um possível choque com a bolsa. Sento bem ao fundo e procuro relaxar.  Espero que o velho tenha entendido o recado. Vou esperar o pagamento dele até sexta. Se ele não pagar eu volto. E então o mato.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Monstro




Monstro
Márcio Chacon

Monstro: Tudo o que é contra a ordem regular da natureza; Coisa gigantesca e colossal; Pessoa cruel, feroz, desumana e perversa. (dicionário Michaelis da língua portuguesa)



Já é tarde. A chuva forte me castiga na parada enquanto o ônibus não vem, mas chegar molhado em casa é a última das minhas preocupações. Terei que contar a Lúcia que fui demitido. Parece que depois da gravidez nossa vida despencou. Menti dizendo que estava feliz com a gravidez dela, mas foi uma péssima hora para termos um filho.
O ônibus finalmente chega. Passo a roleta e sento bem no fundo. Conto cinco a seis pessoas no máximo. Todos de olhares cabisbaixos e cansados. Mesmo sentando no fundo ainda escuto o barulho do radinho de pilha do cobrador. Ele se esforça para sintonizar um jogo de futebol, mas não consigo descobrir quem estaria jogando numa hora dessas. Também não consigo me lembrar que dia da semana é hoje... Saí totalmente perturbado da fábrica. Sei que o pai de Lúcia vai adorar saber da notícia. Aquele velho fervia por dentro durante o casamento e tinha certeza que Lúcia pediria ajuda a ele logo quando os primeiros problemas começassem a surgir.
A chuva não diminui e o ônibus se arrasta diante de um trânsito caótico. O caminho será demorado até deixarmos o centro. Quando pegarmos a avenida Brasil estaremos livres do trânsito e do caos. Encosto a cabeça no vidro e tento dormir um pouco... Ao menos enquanto estivermos presos aqui. Fecho os olhos pensando no que dizer a Lúcia. Aos poucos o sono começa a aparecer até o rádio do cobrador despertar a todos com uma chamada policial. Ele chega a comentar algo com o passageiro sentado perto dele, mas não consigo entender do que se trata. Passam-se vinte minutos e finalmente deixamos o centro. Antes de pegarmos a avenida três viaturas policiais nos ultrapassam... Presumo que sejam as que responderam ao chamado noticiado no rádio. Hugo esperou o pior dia do ano para me demitir. Fiquei oito anos na fábrica e modernizei toda a linha de montagem, mas isso pouco importa para ele. Hugo preferiu dar o emprego ao seu primo que de longe se percebe que não passa de um total incapacitado.
Enfim o caminho parece estar mais limpo... O motorista acelera. Não temos mais tráfego e tumulto... Apenas algumas pouquíssimas sinaleiras e estarei logo em casa. Abro a carteira para conferir o dinheiro pela segunda vez desde que deixei o serviço, mas desta vez sou interrompido por uma freada brusca do motorista. Bato com a cabeça no vidro e solto minha carteira e algumas moedas no chão do ônibus. Escuto um passageiro gritar, ponho a mão na testa para saber se estou sangrando e tento me levantar... Não consigo. A pancada me deixa totalmente tonto e a dor é terrível. Junto a minha carteira com dificuldade... Olho pela janela e não consigo ver nada... Apenas a chuva. O motorista e alguns passageiros saem rapidamente do ônibus. O cobrador e outro passageiro me ajudam a levantar e sair. Ele olha pra mim e resmunga:
- Acho que batemos em um cachorro dos grandes.
Nos juntamos ao motorista e aos demais passageiros para ver o corpo de um animal morto na estrada... Mal sabíamos que o que veríamos ficaria guardado em nossas mentes pelo resto de nossas vidas. O cobrador se enganou ao dizer que se tratava de um cachorro... Aquele animal era grande demais para um cachorro. Talvez pudesse ser uma espécie de lobo, mas muito maior e mais forte do que já tivesse visto na televisão. E não estava morto... Estava vivo, respirando com muita dificuldade e mesmo assim se tornando barulhento e assustador. Tinha a pele escura e a cabeça pintada em vermelho por causa de um corte fundo. Aquela coisa estava ferida gravemente e não tinha forças para se levantar... O único motivo para estarmos vivos era esse... Aquele animal nos encarava como se fossemos realmente uma ameaça.          
Alguns policiais chegam junto com uma ambulância. Um deles pede para nos afastar e deixar espaço para a ambulância passar. Na verdade não era uma ambulância comum. Dois militares mascarados saem de dentro dela com uma espécie de rede. Todos percebemos na hora que aqueles homens não vieram salvar ninguém e sim capturar aquele animal ferido.
Em pouco tempo aquele monstro já está cercado por policiais e militares. Alguns curiosos também aparecem e se juntam ao nosso grupo. Eu estou totalmente paralisado. Não consigo definir o que sinto exatamente. Ao mesmo tempo em que tenho medo e deseje fugir... Tenho vontade de ver como aquilo tudo termina. Preciso saber o que irão fazer com aquele animal. Todos nós estávamos ali esperando o desfecho para aquela cena absurda que parecia não ser real.
Foi então que a chuva diminuiu e junto com ela o barulho da respiração daquele monstro. Ele ainda está vivo e respirando, mas agora era de forma silenciosa... Como se estivesse planejando alguma coisa e juntando forças. Um militar mascarado se aproxima e injeta uma espécie de tranqüilizante em seu peito. A idéia parecia ser simples: Esperar ele adormecer para depois prendê-lo e levá-lo de volta para algum maldito laboratório tão secreto que a sociedade jamais descobrirá onde fica. Não sei o que havia naquele tranqüilizante, mas acredito que não tenha sido o suficiente. Aquele lobo não dorme. Ninguém se move dali e os curiosos aumentam... Já havia umas trinta pessoas no local. Alguns militares chegam com a enorme rede enquanto outro traz mais uma dose de tranqüilizante, mas desta vez aquele animal não deixa que o adormeçam. Bastam dois a três segundos para aquele monstro atacar o militar mascarado. Ele salta sobre aquele homem e precisa apenas de uma mordida para arrancar seu braço fora. Alguns policiais começam a atirar enquanto os militares soltam a rede e correm. A pele daquele lobo parece ser indestrutível... As balas lhe fazem cócegas. Outros dois militares são atacados pelo monstro... Foi então que ele corre e sobe em uma viatura policial. Nosso grupo ainda está bem numeroso até o momento que aquela fera nos vê... Mesmo de longe. Não espero ela descer de cima daquele carro... Começo a correr. Todos fazem o mesmo. Não escuto mais a chuva: Apenas gritos, tiros e a respiração daquele monstro rosnando. Estou a duas quadras da minha rua e corro o mais rápido que posso. O barulho daquele animal está cada vez mais perto e foi então que ouço um dos passageiros cair e gritar... Não paro para ver se ele está sendo atacado. Resolvo entrar no pátio de uma creche e atalhar o caminho. Talvez me separando do grupo esteja a salvo. Atravesso todo o pátio da creche, pulo um muro alto e já estou na outra quadra. Descendo mais um pouco estaria na minha rua e é exatamente o que faço. Atravesso uma antiga cancha de basquete, driblo algumas árvores e arbustos e finalmente chego ao portão de acesso para minha rua. Estou exausto... Sento atrás de uma árvore próxima ao portão para descansar e tentar raciocinar novamente. Ainda se ouve algumas sirenes, mas estão longe. O importante é que não se ouvia mais os gritos e nem aquele lobo assassino. Abro o portão devagar e de maneira silenciosa. A rua está escura e deserta. Há iluminação somente em três postes... Um deles bem em frente ao bar do Celso. Talvez desse uma parada lá para tentar descobrir algo na televisão ou talvez fosse melhor ir direto pra casa e contar tudo a Lúcia. Começo a andar acelerado em direção a minha casa. A escuridão e o silêncio são assustadores. Paro de caminhar quando escuto algo passar correndo atrás de mim. Olho para todos os lados e não vejo nada. Aquilo me paralisa... Congela-me. Não há nada ali. Apenas a escuridão e eu. Volto a caminhar, o barulho continua... Acelero o passo e o barulho aumenta de maneira assustadora. Paro e enxergo um vulto se escondendo entre as árvores. Pode ser um cachorro ou um gato. Pode ser apenas minha imaginação pregando uma peça na escuridão. Caminho em direção àquelas árvores para tentar descobrir o que é aquele vulto e por fim ao meu pânico. O barulho não é mais de passos e sim da respiração daquele animal... Meu coração dispara. Corro em direção a minha casa. O barulho continua me perseguindo e ficando cada vez mais perto. Vejo vultos e sombras de monstros por todo o lado. De longe enxergo a minha casa. Antes de pular para o pátio tiro as chaves do bolso. O barulho continua apavorante. Os vultos me cercam. Entro em casa e tranco a porta. O barulho da respiração daquele monstro ainda é forte. Está tudo escuro. Chamo por Lúcia, mas ela não responde. Atravesso a sala vendo sombras apavorantes pela parede. Fico com medo de acender a luz e dar de cara com o monstro de verdade. A porta de nosso quarto está fechada... Lúcia raramente a tranca. Abro-a devagar e silenciosamente. Encontro Lúcia deitada na cama cercada por vultos e monstros. Sento ao seu lado e tento ligar o abajur. Minhas mãos tremem... Aquelas sombras malignas aumentam na escuridão. Finalmente me controlo e acendo o maldito abajur. A luz faz todos os vultos e monstros desaparecerem. Ela também acorda Lúcia que diz a coisa mais doce que ouvi durante todo o dia:
- Deixei a janta no forno.
Agradeço e vou até a cozinha. Procuro acender todas as lâmpadas que encontro no caminho. As sombras vão desaparecendo na medida que vou iluminando a casa. Tiro um prato de comida de dentro do forno e coloco sobre a mesa... A fome não vem. Vou até a sala e ligo o rádio para saber de alguma coisa... Em poucos segundos tudo que presenciei era noticiado. Aquele lobo teria atacado treze pessoas até ser morto no bairro Cruzeiro. Bem longe da minha casa. Desligo o rádio e guardo o prato novamente dentro do forno. Volto para o quarto e deito ao lado de Lúcia. Não há mais vultos e aquele barulho vindo da rua está tão baixo que não incomoda mais. Lá fora apenas o vento, as árvores e alguns carros... Mais nada. E isso é o suficiente para me fazer dormir.

Psicopatia



Psicopatia
Márcio Chacon


Silenciosamente eu entro na casa. 

Pego uma faca de cozinha e então subo as escadas. Entro em um dos quartos e me deparo com um homem dormindo. 

Meu coração pulsa. Minhas mãos tremem. 

O esfaqueio inúmeras vezes até ter realmente certeza de que ele está morto. 

Saio da casa tão secretamente como havia entrado e então acordo ofegante, pingando suor. 

Que sonho... Parecia tão real! 

Eu nunca tinha ficado tão excitado em toda a minha vida. 

Excitação que se torna preocupação ao checar a hora no relógio. 

Preciso correr e entregar minha antiga sala a Raul.

Quando chego na empresa já o encontro rindo na porta:

- Chateado por eu ter sido promovido no seu lugar?

- Não... Quer saber de uma coisa?

- Que coisa?

- Sonhei com você...

Reino Vindo

Reino Vindo
Márcio Chacon
  Acordo com o barulho da televisão ligada. Levanto ainda com sono... Resultado de uma noite mal-dormida. Sei que não vou conseguir pregar meus olhos tão cedo... Principalmente depois de ontem. Se Hugo descobrir que fui o responsável pela merda que aconteceu estou morto em menos de 24 horas.
Antes de desligar a TV meu telefone toca:
- Alô?
- Marcos... Sou eu.
- Ângelo? Não devia estar me ligando agora. Onde você está?
- Estou em casa.
- Devia estar cruzando a fronteira essa hora! O que houve?
- Não sei bem. Desde que cheguei ontem de noite... Tem dois carros parados em frente a minha casa.
- E qual é o problema?
- Bem... Hoje acordei bem cedo e então quando olhei pela janela... Eles continuavam lá. Aquilo me apavorou, cara.
- Ângelo... Presta bem atenção. Se Hugo ou outra pessoa tivesse descoberto alguma coisa... Você já estaria morto.
- Eu sei, mas estou apavorado, cara.
Sento na cama e tento acalmar aquele homem:
- Está com o dinheiro?
- Claro que sim.
- Então escute. Pegue todo o dinheiro, chame um táxi e vá até a loja do seu irmão. Use o carro dele e deixe a cidade. Só me ligue quando tiver cruzado a fronteira, entendeu?
- Está bem.
- Ângelo... Posso realmente contar contigo? É muito dinheiro.
- Sim, cara. Claro que sim.
- Estou falando de um reino. Seremos reis quando cruzarmos a fronteira. Teremos nosso próprio negócio, nossa própria polícia, nossa própria droga... Entendeu?
- Sim cara, mas quando acordei e vi os...
- Esquece isso, certo? Arrume tudo e faça o que mandei.
- Vai falar com Hugo mesmo, cara? Vai dizer que foi uma armação dos chineses? Que eles fugiram e levaram tudo depois do tiroteio?
- Sim. O Hugo odeia todos eles. Bastava apenas um motivo para iniciar uma guerra. Nós demos isso a ele.
- Cara... Desculpa. Fiquei realmente apavorado.
- Esquece. Ligue-me apenas quando estiver longe.
Desligo o telefone e procuro algo para me vestir. Não posso me preocupar com isso agora. Já está feito e tudo saiu como havia planejado. Poderia pegar as minhas coisas e sumir junto com Ângelo, mas isso ficaria muito na vista. Estragaria todo o meu plano. Hugo jamais vai saber de minha traição... Estará ocupado demais matando os chineses e procurando o dinheiro. Se eu seguir com o plano tudo vai dar certo. Procuro controlar a minha ansiedade, tomo meu café e então ligo para o homem que acabei de trair:
- Alô.
- Hugo... Sou eu.
- Como você está, Marcos?
- Bem. O que lhe contaram?
- Tudo.
- O que pretende fazer?
- O que devia ter feito há muito tempo. Exterminar todos aqueles chineses que andam pela minha cidade.
- O que quer que eu faça?
- Eu preciso de armas... Todas elas. Tem um Jaguar branco estacionado no shopping da cidade. Não tenho interesse no carro e sim no que está dentro do porta-malas, entendeu?
- Sim.
- Vá buscá-lo!
Desligo o telefone, saio de casa e tomo a direção das ruas... Tudo segue realmente como planejado. Ângelo já deve ter pegado o carro com o irmão e muito provavelmente já esteja longe daqui. Chego rapidamente no shopping. Entro no estacionamento vazio e de longe enxergo o lindo Jaguar. Poderia cruzar a fronteira com ele depois de entregar a encomenda de Hugo. Abro seu porta-malas e vejo duas pistolas e uma metralhadora... Pouca coisa para a guerra que Hugo tanto deseja. Entro no carro e ligo para Ângelo... O celular está desligado. Talvez tenha desligado quando estivesse passando por algum policial ou ficado sem sinal quando cruzou a fronteira. Talvez tenha ficado sem bateria. Não tenho tempo para pensar no pior... Todos os meus pensamentos são cessados quando dou a partida e o Jaguar explode. Hugo não teve a guerra que queria, mas conseguiu sua vingança. Matou o homem que o traiu. Eu morri naquela explosão sem conseguir nada. Talvez não devesse ter deixado Ângelo sozinho. Talvez não devesse ter aceitado buscar as armas, mas o diabo daquele Jaguar...

O Início

Pessoal... 

Eu estava escrevendo no site Esquina do Escritor e infelizmente mês passado o site fechou. 

Foi então que resolvi abrir um blog para continuar postando meus contos policiais. 

Minha idéia inicial é manter o site focado apenas na área policial, mas qualquer tipo de sugestão, idéias, contos e até mesmo novos escritores serão sempre bem vindos. Entrem em contato comigo pelo email: 


Um abraço.

Márcio