domingo, 7 de julho de 2013

O Primeiro e o Último





Em uma noite fria, o ar gelado acariciava sua pele insensível.
– Quanto tempo se passou? De onde eu vim? Por que estou aqui?
            Ironicamente, após tanto tempo ele era assolado pelas mesmas angústias dos homens.
            – Eu estou sozinho, meus semelhantes a muito não existem mais. Meu passado agora é turvo em minha mente. Por que não consigo lembrar-me? Qual meu nome? Eu tenho um nome?
            Do alto ele observava os homens. Tão concentrados tão certos do que vão fazer o tempo todo. No entanto, tão cheios de medos e angústias.
– Então essa é a partícula mais especial da criação? Não consigo ver o que eles têm de tão especial. Vagando, se reproduzindo e morrendo em instantes, nada diferentes de insetos.
            Incessantemente, sua mente era invadida por vozes, elas vinham de todos os lados, trazendo dor e sofrimento. Lamentações, súplicas, pedidos e até mesmo alguns agradecimentos.
            – O que é isso? De onde isso vem? O que querem de mim? Parem! Não sei quem vocês são! O que? Essas vozes estão vindo lá de baixo? Por que? Como? Por que imploram para mim? Deveria eu saber o que fazer?  
            – Chega!!!
            As vozes se calaram. – Finalmente silêncio. – ele pensa.
            De súbito, ele se lembrou, lembrou quem ele era. Ele é aquele que estava lá antes do próprio tempo e estará lá depois. Ele é a origem, ele é o final.
            Eu sou a origem e eu sou o destino, eu sou o propósito maior. Eu sou a resposta. Eu sou o Nada.  


           Escrito por João Paulo de Borba Quadros (07/07/2013).

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Demônios

                                                                           






              Uma vez a cada milênio e num intervalo de sete dias, sete demônios detentores de um cosmo magnífico se reúnem num planeta ainda longínquo do conhecimento da raça humana. Durante este período eles discutem todos os eventos que aconteceram ou deixaram de acontecer em todos os 128 planetas da galáxia que ainda permanece sendo explorada por eles.

            Neste encontro é preparada uma grande mesa carregada de especiarias trazidas de suas incansáveis explorações. Diversos líquidos e elixires ricos em conhecimento e muitos alimentos capturados ainda vivos compõe um farto banquete.

            O demônio mais forte do grupo é conhecido como Tríclops. Seu poder é tão magnífico que estivera presente em diversas guerras e, praticamente sozinho, conseguiu dizimar diversos reinos.

            O membro mais antigo é chamado de Merak e o mais novo é Sirão. Sirão também é o mais fraco de todos no quesito força, poder e magia e sua forma física é a que mais se aproxima da raça humana.

            O líder deles é um monstro muito cruel conhecido como Cinzento. Sua maldade e conhecimento são tão fortes que ele é capaz de materializar um escudo de força ao seu redor. Secúlos atrás Merak chegou a ter um braço arrancado ao tentar desferir um golpe no seu líder e assim ganhar a liderança do grupo.

            No decorrer do banquete aqueles demônios narram e se vangloriam de suas viagens e explorações ao seu cruel líder.  Tríclops, por exemplo, tinha sozinho descoberto vida em um planeta bastante longínquo e em pouco tempo escravizara ele por completo. Merak, mesmo perdendo um braço e tendo o corpo marcado por diversas cicatrizes decorrentes de longas batalhas, desenvolveu uma incrível habilidade de manipular objetos usando o poder da mente. Graças e este poder ele fizera dois grandes asteróides se chocarem e provocar uma chuva de aerolitos causando inúmeros estragos em diversos planetas. Aos poucos demônio por demônio foi narrando suas conquistas até que chegou a vez de Sirão ser interrogado por Cinzento:

            - Então, Sirão... O que fizestes de importante no último milênio?

            Sirão se levantou e alguns até brincaram com a situação, pois aquele pequeno monstro mesmo de pé continuava pequeno diante dos demais membros da mesa. Ele sorriu e começou a admirar seu líder. Cinzento era realmente um demônio assustador. Tinhas olhos negros, presas afiadas e seu escudo de força era poderosíssimo.

            Seu líder repetiu a pergunta:

            - Sirão... O que fizestes de importante?

            Então o pequeno monstro respondeu:

            - Eu matei uma criança.

            Todos daquela mesa ficaram surpresos e então Cinzento exigiu uma explicação de Sirão que continuou seu relato:

            Andei num planeta conhecido como Terra por muito tempo. Certa vez fui atraído pelo cheiro de sangue inocente até um precário hospital. Ele ainda funciona, mesmo tendo governantes corruptos que desviam o dinheiro público quase que diariamente. Quando entrei naquele hospital vi que haviam poucos tubos de oxigênio para atender tantos pacientes e foi então que decidi desligá-los por um breve momento. Para isso precisei me materializar por alguns segundos e nesse curto intervalo de tempo acabei sendo visto por uma criança.

            Cinzento indagou:

            - Matou alguém apenas porque fostes identificado?

            Outro demônio também questionou:

            - Já fomos vistos diversas vezes em outros planetas e em razão disso somos temidos por onde passamos. Não há razão para atitudes tão covardes, pois somos superiores a tudo que existe na galáxia.

            Sirão continuou seu relato:

            - Não matei aquela criança só porque ela me viu. Matei-a porque ela falou comigo e suas palavras me afetaram bastante.

            - E o que um humano teria falado de tão grave para provocar a ira de um demônio?

            - Aquela criança me viu materializado na sua frente. Viu a minha verdadeira forma, um demônio de verdade bem a sua frente e, mesmo assim, não se aterrorizou e nem gritou por ajuda. Ela ensaiou um sorriso e disse: “Vocês devem ser bem tristes e sozinhos para fazerem isso.”

            As palavras de Sirão deixara todos em silêncio. Ninguém era capaz de dizer nada. Cinzento encarou Sirão por um breve momento e depois sorriu. Precisava dizer algo difícil naquele momento... Algo gentil:

            - Você fez muito bem, Sirão.

            Seu líder desativou seu campo de força e se aproximou de Sirão. Tocou em seu ombro e começou a lamber o rosto daquele pequeno monstro. Já se faziam vários séculos que Cinzento não demonstrava nenhum gesto de carinho para algum membro daquele grupo. Sirão tentava controlar sua ansiedade na medida em que seu líder ia lambendo seu rosto. Ele no fundo sabia que dificilmente teria outra oportunidade e não hesitou em perdê-la. Num rápido golpe de suas garras afiadas fez um corte fundo no rosto de seu líder e antes que Cinzento pudesse reagir desferiu mais dois golpes tão rápidos e poderosos que matara Cinzento antes mesmo de seu corpo cair no chão. E foi então que Sirão, numa covarde demonstração de carinho, se tornou o novo líder dos demônios.


Escrito por Marcio Chacon (07/06/2013).

terça-feira, 21 de maio de 2013

Notícias de um Futuro Próximo


           




            São quase quatro horas da manhã e não consigo dormir. A minha ansiedade e a alta temperatura incomodam tanto que a forte medicação receitada não funciona.

            Fico com vontade de ligar para Raquel e avisá-la que amanhã vou conseguir a viagem, mas ao mesmo tempo iria preocupá-la à toa... Quem telefona para alguém numa hora dessas? Devia relaxar e tentar dormir, mas está absurdamente quente.

            O futuro é assim: quente e abafado. A bala alojada na minha cabeça incomoda... Parece machucar meu cérebro toda vez que deito sobre o travesseiro.

            Estamos no ano de 2094 e ele é incrivelmente quente. O céu ficou vermelho a quase cinco décadas, as chuvas são raras e a marginalização é gigantesca. Anos atrás fui baleado na cabeça ao reagir durante um assalto e, desde então, tenho terríveis enxaquecas durante a noite. Logo após este trágico acidente realizei a inscrição para concorrer à viagem no tempo. O projeto da viagem iniciou apenas para fins científicos e os únicos que realizavam a viagem eram androides. Com o passar do tempo e após diversas discussões os humanos também começaram a realizar a viagem pelo tempo obedecendo a seguinte regra: humanos poderiam viajar para o passado e androides viajariam para o futuro. Mesmo com uma incrível tecnologia nas nossas mãos ainda existia muito receio em se mandar pessoas para um futuro ainda incerto e desconhecido e, neste caso, androides seriam muito mais capacitados a sobreviver num possível ambiente hostil.

             No dia 3 de fevereiro de 2093 houve o anúncio de que as viagens ao passado estavam sendo permitidas para todos os humanos que pudessem arcar com o alto preço ou em casos de doenças ou riscos à saúde. O comunicado foi transmitido pelo presidente dos Grandes Estados Unidos da América (a décadas atrás todos os países da América do Sul, do Norte e América Central se unificaram a um pedido do atual presidente americano junto a ONU).

            Mesmo se pagando ou tendo a aprovação do governo para a tal viagem ainda seria necessário seguir certas instruções. Não pode e nunca haveria a possiblidade de mudanças radicais em eventos ocorridos no passado... Pensaria como exemplo num possível assassinato de Hitler ainda criança ou ainda termos a chance de viajar para uma época bem distante e salvarmos um homem de ser torturado e crucificado na cruz por assassinos judeus. Eventos ou ações grandes geram reações ainda maiores (segundo a opinião dos nossos grandes líderes mundiais) e, em razão disso, tais eventos eram condenados pelas autoridades.

            Para cada caso seria registrado um número de protocolo, cada número indicaria o evento ou situação a ser corrigida ou evitada. Acidentes envolvendo atropelamentos, brigas e assaltos começaram a aparecer em massa nos protocolos abertos e o meu também se enquadrava nessa situação.

            Não demorou muito para me retornarem com a aprovação para a viagem. A felicidade de muitos em receberem tal documento era um alívio pra mim. Era a chance de voltar no tempo e evitar um assalto e, por consequência, uma bala presa na cabeça para o resto da vida.     

            Uma cápsula alojada no crânio realmente incomoda. Dá uma sensação de estar solta e passeando pelo meu corpo. Levanto da cama e vou até a cozinha. Pego uma garrafa de uísque e encho o copo até derramá-lo pela mesa. A bala rasga meu cérebro toda vez olho para baixo. Bebo aquele uísque devagar. Aquele líquido vai queimando minha garganta e, por breves segundos, minha cabeça pára de doer. Sei que a bebida é um alívio temporário... A solução definitiva virá apenas depois da viagem.

            Vou até a janela e observo as ruas silenciosas e vazias. O toque de recolher é feito às 20:00 e quando enxergamos algum vulto na ruas depois desse horário ou é um assaltante ou um androide fazendo a ronda.

            Confiro o relógio na parede: são 4:47 da manhã. Penso em assistir algo na TV, mas já faz muito tempo que não passa algo que presta na programação aberta. Grandes empresas farmacêuticas e redes de fast-food compraram praticamente todos os canais abertos e agora somos obrigados a assistir comerciais ridículos o dia inteiro ou pagar para se obter o download de um filme ou programa (os preços variam pelo tempo de duração... Gênero e classificação etária são irrelevantes).

            O futuro é realmente quente. A própria tecnologia nos castigou por termos ferrado com o planeta e agora precisamos pagar caro para termos algum tipo de lazer (inclusive sexo seguro).

            Cato meu antigo violão escondido debaixo da cama e tento arranhar alguns blues antigos, mas a bala volta a rasgar minha cabeça. Vou novamente até a cozinha e termino com o uísque que havia ficado na garrafa.

            Decido tomar um banho e iniciar os preparativos para a viagem ao passado. Assim que saio do banheiro pego o celular e mando uma mensagem para Raquel.

            A bala não incomoda mais... A medicação e aquele uísque barato começaram a fazer efeito juntos. Vou até a janela do quarto esperando uma resposta no celular. Já está amanhecendo e muito em breve estarei de volta ao passado. Tento ver algum rosto conhecido pela janela, mas ainda não há pessoas vagando na rua. Apenas um sol vermelho ensanguentando uma cidade que acorda.


Marcio Chacon

domingo, 19 de maio de 2013

Alquimia no Museu



Gravura em madeira
Albrecht Dürer - Alemanha
1471 — 1528


Alquimia no Museu
Gilberto Strapazon

"Alquimia trata da evolução do ser, não apenas da matéria." 

I


-Ora, até que este trabalho não é nada mal!
Ela olhava para as mensagens na tela do computador enquanto acariciava o livro pousado sobre suas pernas.
Poder estudar, trabalhar e ainda se comunicar com seus amigos de toda parte pelo computador era muito bom. Nem sempre tinha alguma coisa diferente naquele grupo, mas noutras vezes, beirava as raias do absurdo ou era apenas simplesmente agradáveis ao máximo.

Combinava com ela poder falar qualquer assunto sem muito pudor ou reserva com pessoas de bom nível. Pelo menos a maioria.


Potion's Exam
Foto: Stella Rothe (Lily) - Detroit, Estados Unidos
A capa do livro era de couro, muito antigo. Aquele era um dos tantos a que tinha acesso naquele museu. E agora guardava sempre consigo, e por precaução fizera cópias bem guardadas. O museu tinha coleções que raramente iriam ser vista pelo público. Livros que fizeram parte de bibliotecas particulares e ali estavam guardadas entre milhares de prateleiras com todo tipo de coisas que as pessoas comuns juntam pela vida. Era um museu das pessoas, coisas normais de todos. Mas e quem é normal entre milhares?

Pela porta aberta olhou um pouco para o corredor. Lembrou de quando tinha apenas uma sala minúscula perto do almoxarifado. Agora tinha uma sala ampla, mas continuava como antes cheia de caixas, papéis e itens a classificar por toda parte. Mudam os cargos mas a tarefa era a mesma. Só que com mais responsabilidades.
Passava os dias cumprindo suas tarefas e de vez em quando, ao olhar tantos pertences recolhidos, que representavam a maneira de viver de pessoas comuns, encontrava coisas que faziam parte de hobbies e interesses pessoais de cada um.


Coleções de todo tipo apareciam. Borboletas, caixas de fósforo, rótulos de refrigerantes antigos, selos de maços de cigarro, fios elétricos de todo tipo, estranhas peças mecânicas sabe-se lá de que aparelhos, amostras de minerais, objetos usados nalguma crença espiritual sabe-se lá de que lugar do planeta, roupas de balé, chapéus de palhaço, cordas de navio, coleiras de cachorro, etc. Difícil imaginar o que não se pode colecionar ao ver tudo aquilo. E talvez poucas seriam expostas nalguma mostra pública algumas décadas depois.

E as vezes se deparava com livros pessoais, cheios de anotações nas margens. Alguns encapados em tecido ou couro, enfeitados ricamente. Coleções raras, livros antigos. Novelas, enciclopédias, clássicos e outros quem nem imaginava que alguém tivesse lido alguma vez.


Certo dia, folheando um destes que percebeu por acaso, uma coincidência. Aliás, muito mais que isto. Tinha tudo a ver com a vida toda que ela teve, de bar em bar, de escola em escola, de um estágio para outro. Tantos empregos, amigos, pessoas e situações que aos poucos se acumulavam e formaram a vida que ela tinha escolhido.

Era um livro de um alquimista amador. Se é que existe algo de amador nisto.


II



Muitos alquimistas são apenas curiosos. Mas ao que soubesse, alquimistas ficavam tentando fazer ouro de chumbo, segundo os livros e revistas censurados pelos governos e igrejas. A história é contada pelos vencedores, pelos interesses de alguns. Ela aprendera que nem sempre censura significa algo puro, mas apenas a intenção de barrar algo inconveniente.Tremeu ao lembrar da inquisição e seus braços negros se extendendo até os tempos atuais.

Aquele texto era diferente. De repente, uma frase ao acaso, umas poucas palavras. Fazia um sentido impressionante com a vida pessoal dela. Parecia que aquela pessoa, quase cem anos antes a conhecia como a palma da mão.

"Lost" In Another World
Fotografia: Moonchild213 - Estados Unidos
Sentiu um arrepio na nuca. Todos pelos do corpo se arrepiaram. Todos. Gostava de seu corpo ao natural, não era dada a muitos tratamentos estéticos que tantas mulheres faziam. Mas aquilo mexeu com ela como se de repente todos seus hormônios tivessem fervido dentro de seu corpo. Era como se estivesse se apaixonando por algo que não concebia, uma sensação tão grande de plenitude e compreensão tomou conta dela que simplesmente fechou os olhos e deixou aquela sensação de prazer repentino tomar conta dela.


Milhões de notas musicais e estrelas dançaram dentro dela. Imagens, cenas épicas a envolviam como se fossem todas ligadas por cordões de uma luz indescritível e todos formavam uma grande teia cósmica da qual ela fazia parte e nela, tecia um grande casulo. Havia alguém mais naquela epopeia toda que parecia infindável, um jovem estudante distante dali, que conhecia pelas muitas conversas com pessoas de todas partes.

Ela entendeu que aquele garoto era alguém especial. Fazia parte daquele cosmos todo. Estaria onde fosse necessário quando estivesse pronto. Era teimoso e preguiçoso, precisava sempre de um estímulo para fazer as coisas. Agora ela sabia que havia algo mais naquela amizade e que ela nunca soubera explicar. Ele tinha uma missão e ela sabia o que devia ser feito. Muitas mudanças iriam ocorrer em todo planeta e os grupos sociais estavam por se tornar tão misturados que perderiam suas próprias identidades. Caos social e estagnação. Isto não podia acontecer.

Os olhos amendoados se abriram lentamente sobre o livro que agora tinha abraçado longamente sem perceber. Sentiu a antiga capa de couro macia como se fosse a pele jovem e fresca de uma mulher. Será que alguém tinha passado hidratante?

Quase todas as páginas tinham grandes anotações e desenhos adicionais feitos a mão. Ela tinha aberto o livro num trecho em que o antigo praticante havia escrito algo comparando "a obra" de forma direta e simples com o cotidiano. Falava que a "transformação" era possível e que isto se referia a própria pessoa e sua ligação com o mundo e as demais pessoas. Nada de ouro, nem chumbo. O alquimista falava de conseguir mudar sua própria realidade e talvez a dos demais de uma forma tão simples que de repente, tudo aquilo acendeu dentro da cabeça dela como um grande sol.
Nada de ouro! Ela era o chumbo que se transformaria em ouro. Era fazer algo diferente, agir sobre si e o ambiente ao redor.

Tudo estava de repente tão claro na cabeça dela.


III

Sempre que podia, viajava para diversos lugares diferentes. Acampava com amigos e o clima festivo fazia parte da caminhada que agora entendia. A alegria é parte da natureza. E sem perceber, cada um lhe ajudava de alguma forma nos passos que dava.

Os elementos, as coisas da natureza, as sociedades, cada pessoa, tudo era interligado e de uma forma tal que uma ação correspondia a outra de uma forma que os cientistas não percebiam enquanto ficavam garimpando migalhas meramente palpáveis. Se apenas levantassem os olhos de seus cálculos e prestassem atenção ao que estava ali, bem na sua frente!

Penetrou nalguns mistérios exóticos. Participou de grupos que tinham visão diferente do mundo. Conheceu rituais diferentes ligados a natureza, mas que lhe ensinavam também tanto sobre a civilização. Encontrava pessoas que pareciam tão esclarecidas para logo descobrir que aquilo era só uma casca de poesia decorada, de roupas escolhidas cuidadosamente para darem um ar psicodélico. Mas o interior daquela casca era tão comum quanto tantos.

Ela evoluiu e foi conhecendo as pessoas a medida que cada vez mais aprendia e praticava em si mesmo. Acendera o fogo da grande pira alquímica e os cadinhos refinavam dia e noite seu espírito.

Fez mulher adulta, construiu um lar aconchegante. Sua vida pessoal era regrada e cheia de atividades em várias áreas. Os filhos lindos de olhos azuis, como teriam sido as crianças da antiga Atlântida, pareciam saber de forma instintiva coisas profundas sobre as estrêlas e as profundezas do espaço sideral. 

Com o tempo, trabalhou sobre os ensinamentos registrados. Tinha quase tudo que precisava ali mesmo. Vantagem de trabalhar num museu. E ainda por cima, podia conversar com outras pessoas pelas redes de computadores a que tinha acesso. Para muitos eram conversas agradáveis. Para ela, era como lidar com os elementos químicos da vida. Passos de um grande trabalho.

E graças a tecnologia, tivera acesso a outros livros muito antigos. Engraçado como passara a perceber que muitos daqueles diagramas seculares, lembravam desenhos de placas de circuito de aparelhos eletrônicos,  apesar de usarem outra forma de energia e não possuirem as mesmas capacidades. Nalgum século a frente isto seria revelado também quando alguém conseguisse avançar o suficiente na prática daquela arte e os cientistas finalmente conseguissem entender seus princípios. 

Através dos estudos, aprendeu outras técnicas, linhas de estudo variadas. E pegou alguns atalhos, fez alguns acréscimos que considerou úteis.


Choosing book
Fotografia: Bárbara R. Lenfers - Brasil

De uma maneira que parecia puro acaso, conhecera aquela bibliotecária(1), que parecia tão dócil, mas tinha tanta coisa a ensinar. Olhava dentro dos seus olhos com uma intensidade que a desconcertava totalmente para logo parecer tão natural e relaxada como sempre. Era incrível como aquela mulher com seu corpo miúdo tinha conseguido acesso total e a confiança de tantos homens e mulheres ligados a pesquisa e as grandes corporações de toda parte.
A bibliotecária lhe indicou alguns livros muito raros, que poucos sabiam da sua existência. Aprendeu muito neles. Encontrou informações que depois foram recebendo nalguns pontos, as chaves verbais, que uniam as partes secretas daquele ensinamento hermético. Alguém acompanhava seu trabalho de longe, mas parecendo estar tão presente, as grandes irmandades secretas, e lhe transmitiam o significados ocultos de forma velada. Tinha que estar atenta aos simbolismos.

Numa das experiências, criou um pequeno "familiar", um assistente espiritual(2). Não fazia parte do livro, mas para ela ajudou como um grande atalho muito prático. Preferiu dar-lhe uma pequena massa corpórea, apesar de não falar, era agradável de se ver. Um ser sem forma, mas que parecia pulsar de vida no pequeno recipiente que era seu mundo. As anotações a respeito eram corretas e ele, de maneira simples as vezes, confirmava algo ou trazia alguma informação. Como todo assistente, era mudo, mas os resultados de seu trabalho noutras dimensões apareciam rapidamente.


Notas (1) A bibliotecária é a personagem do conto "Bocas Vendidas", do mesmo autor
(2) Familiar: Criatura espiritual gerada através de magia.


IV

Com o tempo, outros resultados começaram a surgir. Mudanças pessoais e profissionais. Oportunidades apareciam quando ela estava pronta para elas, estava ficando mais atenta a si mesma. Descobria na prática a sincronicidade de eventos que ocorrem quando se está em harmonia. Ter a mente objetiva. Havia mudado sua alimentação que agora era mais regrada, mais focada a um estado de espírito pacífico e saudável.

Philter of Transformation
Artista: LillaKattuggla - Acela Tesch - Suécia
Coletava ingredientes raros sempre que podia. Coisas pessoais de certas pessoas que um dia seriam importantes.

Caminhou pela sala, procurou no pequeno baú um pequeno vidro que guardara tantos anos antes. A saliva de um futuro diplomata, um beijo que colocara ali dentro. Aquele rapaz teimoso valera o esforço. Fizera a trajetória nos diversos escalões e se dirigia ao contato com governantes de toda parte.

Passaram muitos anos desde então. Ela trabalhava sem ele saber, em várias áreas.

Acariciava a capa do livro. Nunca esquecera daquela primeira grande sensação quando o encontrara. Ela teve muitas outras experiências onde as sensações foram fantásticas, mas aquela primeira descoberta de si mesmo e de todo o universo que a rodeava, estavam marcadas em suas memórias para sempre.

Observava as mensagens na tela do computador. A pequena criaturinha, o assistente, parecia balançar, quase uma dança, dentro do recipiente sobre a mesa. Se tivesse rosto ela pensaria que aquilo parecia um sorriso. Voltou os olhos para a tela. Os canais de notícias já estavam divulgando os resultados do evento.

Aquele beijo quase casto, de tanto tempo atrás tinha mudado algo no mundo. Ela via que muitas pessoas, até nações inteiras seriam beneficiadas com aquilo.

Uma janelinha se abriu na tela do computador, com uma mensagem enviada pelo comunicador-telefone do velho amigo teimoso. Ele dera uma escapada em meio a toda formalidade do encontro de líderes durante aquele evento para dizer "Olá" e que estava feliz com tudo aquilo, mesmo que não acreditasse muito. Na verdade nunca vira muito diferença entre andar por palácios e embaixadas pelo mundo ou dar aulas para uma turma divertida nalguma universidade.

Ela respondeu com um elogio. O tratado havia sido assinado. Foram oito anos de trabalho em vários países.

Ela lembrava do toque tímido, da pele dele, naquele único encontro tantos anos passados. Seus braços agora eram os de um homem e ela deixou-se levar pela imaginação e com a sensação de calor que subiu pelo seu ventre. Até que ele era atraente. Fora até lá buscar sua saliva e assegurar-se que ele estaria encaminhado para o que deveria fazer. Agora ele tinha família, muitos filhos, estava sempre em boa forma apesar de tanto tempo viajando entre um país e outro.

Deixou-se excitar. Digitava com uma mão enquanto trocavam mensagens carinhosas e de amizade. Algumas brincadeiras ainda juvenis, sinal de muitos anos de convivência, mesmo distante. Outras mais picantes. A mão dela se agitava freneticamente. Já era tarde e não tinha mais ninguém no museu. A roupa formal se abrira. Era agradável imaginar que ele estava nalgum canto de um grande salão de convenções enquanto ela lhe dizia que estava apreciando o momento. Mesmo que ele nunca a tivesse tocado além daquela vez, sempre que podiam, trocavam confidencias e intimidades.

Combinava com o ronronar que a criaturinha agora fazia em cima da mesa. Ela notou por um instante que a pequena coisinha estava fora do seu recipiente normal, mas não se importou.
Voltou para as mensagens no computador. Do outro lado do mundo chegavam as mensagens descrevendo algumas das personalidades presentes ao evento. Presidentes, grandes empresários, cientistas, líderes das maiores religiões do planeta. Jornalistas andavam por toda parte. Fórum Mundial Unificado. Quem é que inventava esses nomes estúpidos? Mas aquele realmente era um momento muito especial, algo muito grande.
O grande tratado havia sido assinado e países com posições políticas tão diferentes haviam se rendido em comum acordo.
Tentou mandar uma mensagem para a bibliotecária. Por acaso ela esteve na cidade do grande fórum durante alguns dias antes. Engraçado como uma assistente comum como aquela conseguia ser levada para trabalhar em tantos eventos.


V


Ela entendeu o que significava a realização da grande obra. Todo aquele aprendizado. Era isto que aquela pessoa que redigira aquele livro com tanto cuidado estava fazendo no seu tempo. Preparando a continuidade do trabalho de séculos, de tantos alquimistas.
A Grande Obra é uma continuidade de aprendizados e realizações que uniu eras distantes até o presente.
Agora, ela concluíra aquele grande passo. Parecia haver outros nas leituras do livro. Mas ela ainda entendia muitos daqueles símbolos secretos. Quem sabe fossem referências a algo ou alguém que nasceria (talvez um messias) e seria alimentado com o fruto íntimo da vida que chegaria quando a obra se realizasse? Tinha as vezes a impressão que seria algo ligado a transmissão da vida entre uma pessoa e algo totalmente novo.
Mas também por vezes pensava se alguns daqueles atalhos que tinha tomado teriam deixado escapar algo que podia ter aprendido? Não comentava sobre isto com a bibliotecária, mas com tantas coisas que aquela mulherzinha dava a entender que fazia, então porque ela não poderia ter um pouco de iniciativa também?

Percebeu um som um pouco mais alto. Ouviu um roncar diferente que lhe tirou do seu devaneio. Seu corpo estava suado e a respiração ainda ofegante. Passou a mão entre as pernas úmidas. O cheiro do seu prazer inundava a sala.
Olhou ao redor por algum tempo antes de perceber que era seu pequeno amiguinho, o assistente espiritual que estava em cima da mesa. Fazia um som diferente, como um ronco, ela nunca havia visto aquilo. Quem sabe estivesse agitado também? Era sempre tão doce e prestativo.
Fez menção de se virar novamente para a tela do computador quando ouviu a voz nítida:
-Muito bem. Conseguistes realizar então a tarefa que te confiamos.
Ela virou-se rápido. Então a criaturinha falava? Ela agora estava de pé dentro do seu recipiente. Na verdade não tinha pés, mas estava erguida e uma protuberância em forma de uma pequena cabeça estava virada para ela.
Então a criatura, levantando-se mais ainda, passou a vibrar, fazendo um som oco de dentro de si.

Os olhos dela agora estavam arregalados. Ela nunca vira aquilo. Calafrios passavam pela sua coluna. Lembrou dos atalhos e de uma frase do livro, um alerta: "Natura non facit saltum!" (a natureza não evolui aos pulos).
A criatura mudara da cor castanho que sempre teve, como se fosse um hamster e ficou vermelha escuro.
Uma pequena boca surgiu, tinha muitos dentes, e disse num tom de voz surpreendente:
-Agora venha cá! Chegou o meu tempo e tenho fome, alimente-me!



Lab Rat
Arte digital: Pandatails (Oliver) - Estados Unidos




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P+
21/03/2013

sexta-feira, 12 de abril de 2013

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Insônia de Estimação

Hydralisk
Artista: B.c.N.y. -Taiwan and New York

Insônia de Estimação
Gilberto Strapazon, 23/02/2013

"Engraçado como não durmo. Mas pelo menos meu bichinho de estimação me faz companhia e cuido dele."


Insônia deveria ser alguma coisa aborrecida. Horas e horas, corpo dolorido, cansado e os olhos bem abertos.
Comigo acontece diferente. Passo as horas fazendo alguma coisa, o tempo não passa e o sono não vem. Mas não fico com aquela sensação de dor física, nem entediado.
Também não é apenas falta de sono, ou que eu não durma. Sinto falta do descanso.
Mas tenho de cuidar do meu bichinho de estimação também. Ele até que não toma muito do meu tempo, mas ele gosta de receber atenção e é fácil notar o rabinho balançando.
Um biscoito, um carinho na cabeça, catar pulgas. E ele já fica todo faceiro e vai correndo para o quintal atrás de algum gato que tente se aventurar invadindo o espaço dele.
Preciso lembrar de consertar a escada lateral. Outro dia ele bateu de novo nela e tenho que consertar os degraus antes que eu mesmo tropece.

Como é bom ter um bichinho de estimação. É só cuidar para não deixá-lo infeliz ou sentindo-se sózinho. As vezes ele fica carente e acaba espichando a cabeça por cima da cerca e pegando alguém na rua. Acho que é próprio da raça, já tentei ensinar mas não tem jeito. Ele senta, deita, busca a bolinha, tudo que um bichinho adestrado e inteligente sabe fazer.
Ainda bem que ele é naturalmente discreto. Parece um bichinho comum, apenas tem essa mania de vez em quando. 
Da última vez foi o motorista da entrega para o mercado que estava descendo do caminhão. Ficou chato aquele caminhão estacionado ali por dias até que alguém viesse procurar e ainda ficaram perguntando se alguém tinha visto para onde o motorista tinha ido. Mas encontraram uma sacola de roupas atrás do banco do motorista e devem ter concluído que ele fugiu com o dinheiro das entregas.
Claro que se fosse um ciclista seria mais fácil. Acho que meu bichinho pensa que os pneus são algum tipo de goma de mascar então pega ciclista e bicicleta juntos. Depois fica um tempão mastigando os pneus lá no pátio dos fundos, sentado na casinha dele. É uma graça.
E a digestão dele é ótima. Compro sempre uma boa ração, então nunca tem problema.
Assim ele me faz companhia, e se eu por acaso finalmente dormir procuro me assegurar que esteja bem alimentado. As vezes faço cócegas na barriguinha dele até ele dormir primeiro. Só que aí eu já perdi o sono de novo e fico cuidando o movimento das pessoas na rua. Elas vem e vão. As vezes a rua fica vazia por alguns momentos e apenas uma pessoa está passando. São os momentos de silêncio como este que acordam meu bichinho. Acho que ele sente a diferença dos passos ecoando na rua deserta e vêm dar uma espiada.
E a noite está linda hoje. As estrêlas brilham e o cenário da rua vazia dá um tom romântico.
Ei, olha lá, um skatista vem descendo sózinho por cima da calçada.
Acaricio a cabeça do meu bichinho sentado quieto ao meu lado, os olhos dele acompanham o skatista. Por um momento o pescoço começa a se espichar, mas foi só fazer mais cócegas atrás das orelhas que ele relaxou. É fácil cuidar dele, não incomoda nada. É só fazer carinho e não deixar ele sentir-se carente.

Não me incomodo com a insônia. Tenho meu bichinho de estimação e passo as horas com ele.

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