domingo, 4 de novembro de 2012

TPM de Oliveira

Eyeshadowfun
Foto: Tina (griffsnuff) - Norway


TPM de Oliveira
Gilberto Strapazon
04/11/2012



Azeite de oliva. Lubrifica e tem aquele sabor de azeitonas da Grécia.

Ela sabe que eu gosto disto.

Hércules correndo pelos campos, sendo desafiado pelos deuses.

Droga de travesseiro. Tento me acomodar nesta porcaria de cama e parece que nada ajuda.

Mas o cheiro dela ainda está nos lençóis. Mistura de delícia e farra.

Está amanhecendo e vou ter que botar o colchão no sol.

Foi sensacional o banho de champagne, mas seria mais prático se fosse na banheira.

Mas valeu cada instante. Quer dizer, se ela não estivesse de novo daquele jeito.

Odeio ela quando faz isto.

Deve ser psicopata. Deve me enganar de uma maneira que nem o próprio Papa desconfiaria.

Quer dizer, ele deve acreditar até em Papai Noel. Ele é o Papa né? Quanto mais acreditar nesta doida.

Putz! Esta porcaria de azeite tava quente demais!

Arde um pouco. Saco! Meu saco!

Pensando bem: que merda! Eu me sinto um michê de merda quando ela faz isso.

Está bem, está bem, eu sei que faço de tudo com ela, mas não é a mesma coisa, eu não deixo marcas, droga!

Tudo bem que ela é legal, sempre me dá uns presentinhos e o cartão de crédito ela sempre segura na boa.

Legal mesmo. Já fiz um monte de coisa e ela nem questionou pra que foi.

E não abusei também. Se vamos fazer juntos, é juntos e nunca fui de me passar em excessos. Nem pedi para fazer uma plástica no meu rosto por causa das queimaduras. Ela me ama assim mesmo, somos parte um do outro, nossa própria obra de arte.

Claro que é legal ter as coisas, usar o dinheiro. Mas desperdício é bobagem. E as coisas maiores sempre deixei para ela mesmo oferecer. A reforma do apartamento foi legal, mas ela mesmo queria colocar aqueles acessórios medievais na nossa “sala de diversão”. E aquele “painel de olhos” ficou legal. Isso eu reconheço, ela tem uma queda por azeite quente e não queimou nenhum dos olhos do painel. Obra de arte mesmo. Só programadores de sistemas integrados. Uau! Quem inventou a computação nem devia imaginar essa visão. Cada olhar daqueles fixado para sempre com uma última tela gráfica na retina.

Dou e recebo, compartilhamos juntos.

Tanta bronca dela que já segurei na boa. Nem faço idéia se existe alguma contabilidade para isto. Só sei que a cada ciclo da Lua vem aquele estouro. É bater ou relaxar. As vezes esqueço do calendário e sobra pra mim.

Ah, a contabilidade... aquela surra que ela deu na mulher daquele escritório porque tentou se passar comigo... Nossa! Tudo por causa de um erro na planilha de cálculo que ela pediu para ajudar na casa dela. 

Três meses com o maxilar fraturado foi especial mesmo. Que belo pontapé! Até fiquei com pena da menina, ou mulher. Depois filmamos umas cenas tórridas com ela na enfermaria e a sujeita topou tudo. Ou seria medo por causa da pinça puxando os pontos recém feitos? Sei lá, ela nem gritou. Acho que se não tivesse gostado teria gritado muito ao invés de gemer. Está certo que nem conseguia falar, mas do jeito que respirava gozou muito.

Aí eu me distraio e ela sempre me pega desprevenido. De novo! Já falei que essa porcaria de azeite quente machuca!

Desconta naquele programador idiota então! O cara não aprende mesmo como lançar as variáveis do cálculo no computador.

E a Lua está quase cheia, de novo. Desta vez estou prevenido. O chicote está pronto e o serviço na empresa está saturado por causa de uns babacas.

E olha, aquela magrela tonta que projeta sistemas está toda docinha comigo.

A doida já viu e vem vindo. A Lua está cheia. Vou segurar a mão dela no meu rosto, o braço é fino, os ossos delicados.

Lá vem ela com a TPM toda levantando a cadeira pronta para arremessar. Dou meio passo para trás e seguro o braço da tonta que fica bem espichado, a pele branca, o decote sensacional.

O som do antebraço quebrando enche o ar... ainda bem que sempre tenho minha câmera comigo. Ela vai ficar linda quando receber o banho de azeite de oliva na enfermaria...


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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Casa Errada

Foto: Sooper-deviant  (USA)

Casa Errada
Gilberto Strapazon 22/10/2012


Da série: Pequenas Estórias imprevistas

Nota do autor: Por uma questão editorial (horário e público), a mesma foi escrita em duas versões.


Versão I

Os netinhos sempre ficavam espantados cada vez que o vovô Lobo contava aquela estória do seu tempo de juventude.

-Pois é meus netinhos, foi assim mesmo! Eu estava em casa, de repente entrou aquela guria totalmente bêbada, numa TPM daquelas, fazendo o maior escândalo e gritando que eu não era a vó dela e aí deu aquela bagunça que até hoje não entendi direito!!!

-Só escapei porque me fiz de morto e consegui chegar no pronto-socorro todo arrebentado!


Versão II

Os netinhos sempre ficavam espantados cada vez que o vovô Lobo, hippie das antigas, contava aquela estória do seu tempo de juventude.

-Mas bah gurizada, eu tava na minha baia curtindo umas. De repente entra a neta da velha lá do 51. Ela era a maior porra louca! A guria tava tri xarope e entrou numas assim do nada cvéio!
-Tri doidona de TPM e bebaça no maior trago meu!
-Falei que tava no lugar errado e ela saiu gritando que eu não era a vó dela e ninguém mandava
nela!
-Naquela gritaria toda quando vi apareceu vizinho de tudo quanto é lado já quebrando o pau.
-Deu a maior merda, barraco fudido da porra cvéii!!!
-Ferraram comigo, ainda levei a culpa e só escapei porque me fiz de morto e consegui chegar no pronto-socorro todo arrebentado!



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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Realidade Paralela

Mountain Farming
Fotografia: Bernhard Siegl (Austria)


Realidade Paralela
Gilberto Strapazon




“Sabe-se que nos planos astrais as formas existentes utilizam nossa energia vital para se manifestar”.


I


O pequeno grupo descia pela encosta. Pela floresta de pinheiros viam o céu azul. A paisagem magnífica de grandes montanhas facilmente poderia ser nos Alpes ou quem sabe na Nova Zelândia.
A temperatura era agradável como a primavera. Aqui e ali pequenos insetos coloridos voavam.
Uns poucos passos a frente, Gerson caminhava observando os arredores quando uma leve brisa que veio por trás do grupo trouxe o aroma inconfundível. Como um sinal de alarme no mesmo instante ele se virou e olhou para os outros três que vinham com uma expressão descontraída.
Bastou um instante de seu olhar para que todos imediatamente parassem com os olhos varrendo todo perímetro.
Gerson, o líder do grupo, era jovem, no máximo uns trinta anos. Tinha as feições marcadas de quem já passara por várias situações diferentes. Algumas marcas nos braços eram lembranças de recentes ferimentos, todos pequenos.
Olhou para o grupo e falou muito sério:
-Eu não acredito que um de vocês foi peidar logo agora! Quem foi que fez isto? Esqueceu onde estamos?
Norberto, o terceiro da fila, alto e de cabelos ruivos, imediatamente respondeu:
-Desculpe Gerson, foi sem querer. Estamos indo tão bem que eu relaxei e esqueci que a última refeição poderia fazer isto. Aquele assado estava muito bom!
-Claro que poderia né? Bradou Gerson. Aqui qualquer coisa pode estragar com tudo. Bem, até agora não vi nada também. Talvez esse lugar seja neutro também. Bem, quem sabe temos algum tempo ainda. Vamos aproveitar para aliviar um pouco.
Imediatamente todos deram apenas alguns passos e saíram da trilha para urinar.
-Não! Todos juntos de novo não! Gritou Gerson, mas era tarde.
O cheiro da urina fresca já se espalhava com o vento na mesma direção do peido do Norberto.
Ouviram um zumbido leve que vinha da mata logo a frente. As folhas das árvores brilhavam.
-Corram! Gritou Norberto, mas todos já estavam recuando correndo, subindo um pouco a encosta e logo descendo entre as árvores. Sempre era melhor seguir em frente do que voltar por um caminho já trilhado.Eles haviam aprendido que os caminhos sumiam ou mudavam logo que tiivessem saído de vista.  
O zumbido parou rapidamente e eles também fizeram uma rápida pausa para ver o que acontecera.
No lugar onde estavam a pouco, havia uma casa de madeira, o jardim de flores muito bonitas.
Observaram alguns instantes e voltaram mais relaxados.


II

A casa recém-surgida parecia ter estado ali por décadas. Muito bem cuidada, janelas abertas mostravam o interior bem decorado e o cheiro de um bolo no forno convidavam a entrar.
Olharam-se e sem dizer uma palavra, entraram.
A mesa estava servida e eles se espalharam pela casa. Julia sentou-se à mesa com Gerson  e serviram-se de torradas quentes com manteiga.
Da cozinha veio uma bela mulher, traços nórdicos com uma bandeja, trazendo o bolo recém-tirado do forno. Começaram a conversar animadamente sobre as coisas cotidianas. Era tão natural que pareciam conviver diariamente e todos se conhecessem.Marcos trocava algumas brincadeiras com a mulher na cozinha enquanto pegava uma cerveja na geladeira.
Norberto disse que ia aproveitar para tomar um banho e a mulher avisou que a roupa dele já estava passada no quarto de cima. Ele subiu e logo se ouvia que conversava com outra mulher mais jovem no andar de cima.  A conversa era animada e ambos foram rindo para o banheiro.
Luis que por enquanto tinha preferido comer apenas alguns biscoitos amanteigados vasculhava a estante de livros. Por sinal, os biscoitos eram deliciosos.
Gerson olhou para ele e disse:
-Luis, quem sabe desta vez algum destes livros possa ter algo sobre este lugar?
-Bem, é o que tento descobrir. Mas todos os livros sempre parecem tão comuns.  Assuntos gerais, história antiga, romances. Nada de especial. Já tentei até contar quantas letras tem nos títulos para ver se tem alguma relação ou se as iniciais formam alguma sigla, qualquer coisa. Nada! Parece o que encontraríamos em qualquer livraria ou banca de revista daquelas comuns. A única coisa é que os personagens retratados, apesar de familiares, não tem nomes que possamos conhecer. As revistas parecem as mesmas de sempre, mas nalgum outro lugar. Lembram aquela coleção de vídeos pornô que encontramos na outra vez? Eu poderia jurar que conheci aquela atriz pessoalmente, mas não lembro donde. Pode ter sido num daqueles programas de entrevista também. Acho que ela foi eleita deputada no país dela.Mas não é a mesma, apenas é algo familiar, como tudo aqui. Olhem os enfeites na prateleira. Não parecem aqueles que sua vó tinha em casa Julia?
Fazendo uma pequena pausa, Julia olhou sobre os óculos, e continuou passando mel numa fatia de bolo:
-É que você está sempre esquecendo que nem sabemos como chegamos aqui. Pensa que estamos nalgum buraco qualquer ou fomos sequestrados.  Desta vez tivemos sorte, e ainda por cima, o Norberto está se divertindo lá em cima. Deu uma piscada para Gerson que conversava qualquer coisa com a mulher da cozinha:
-Como de costume não é Gerson?  
Ambos riram e olharam para a escada. Norberto vinha com ar satisfeito, o cabelo ainda úmido e uma jovem de seus 19 anos, cabelos também úmidos,  contava sobre o que tinha feito na semana.  Sentaram para lanchar enquanto os demais cada um a sua vez tomou banho e trocou de roupas.
Era como estar numa pousada, onde todos eram íntimos e se conheciam.
Mas eles sabiam que não poderiam ficar ali.
A casa era agradável e com uma boa noite de sono, todos estariam bem no dia seguinte.
Por precaução, fizeram Norberto comer doces que sempre faziam ele peidar. E todos urinaram do lado de fora da casa antes de deitar. Observaram algum tempo, mas nenhum som, nenhuma alteração no ambiente ocorreu. Bem, desta vez a combinação parece ter dado certo.Pena que não poderia ser repetida noutro lugar, a manifestação só acontecia uma vez e não tinha muita lógica. Era como um sonho. 

Macalania woods
Artista: BloodlineV (Finland)
Como a noite estava agradável, Gerson pegou uma garrafa de vinho, um pedaço de queijo, convidou Julia e foram para o jardim em frente.
A noite estrelada era magnífica.  Deviam estar a uns mil metros de altura. A lua crescente tinha um leve brilho azulado.
Beberam vinho e entre risos e brincadeiras se aconchegaram sobre a relva.
Seus corpos logo estavam nus e Julia puxou Gerson para junto de si. As posições variavam e ela logo montou por cima dele, apertando-o com as pernas. O gozo dela veio primeiro, forte e por instantes ela pensou que todas as estrelas estavam ao seu redor... Estava toda molhada, seus fluidos íntimos escorriam pelas coxas até o chão...
As estrelas ao seu redor... Um zumbido... Ela despertou do estado de relaxamento instantaneamente.
-Gerson... Gerson! Estou molhada! Devíamos ter ficado dentro da casa, em cima da cama estaria seguro! Droga!
O vento que começara de repente já estava forte.
Numa fração de tempo todos do grupo já estavam junto deles que se vestiram rápido enquanto observavam os arredores.
-De novo! Gritou Norberto! Bem, desta vez não fui eu falou rindo e apontando para Julia, que ajeitava a calcinha enquanto saiam do lugar rapidamente para descer novamente a encosta.
O lugar em que estavam parecia ter se tornado um campo de estrelas. Não havia mata, a casa havia sumido bem como seus ocupantes. Algumas coisas estranhas flutuavam no céu, mas já eram conhecidas e pareciam inofensivas.Costumavam sumir logo.

III



Gods of the Valley
Artista: Sandro Rybak (Germany)
Luis, sempre prevenido, tinha abastecido sua mochila com alguns mantimentos antes de ir deitar. Pelo jeito iriam precisar. A luz da Lua que agora parecia estar quase cheia mostrava que estavam numa larga área sem vegetação.
Gerson perguntou sobre as mochilas. Norberto respondeu:
-Pegamos todas é claro. Eu posso ser meio desligado, mas já aprendi que aqui não podemos baixar muito a guarda. Que lugar maluco! Qualquer coisa que saia dos nossos corpos faz mudar tudo! Eu peido e aparece uma cabana suíça. A Julia trepa e o mundo vira um deserto sob a luz do Luar. O Marcos arrota cerveja e começa a chover.
Continuou:
-Lembram-se daquela vez que o Luis não aguentou e foi dar uma cagada na beira dos arbustos? Foi até engraçado quando a merda encostou no chão e aquele monte de fadas luminosas surgiu, pena que botaram fogo em toda mata e tivemos que pular do penhasco dentro daquele rio gelado.
Continuou:
-E aquela vez que algum alguém mijou nas pedras e apareceu aquele rio com o cais? Acho que aquele vilarejo era muito doido mesmo. Onde mais teria uma banda de rock progressivo tocando num bar de estilo rural no meio das montanhas? Não descobrimos o nome, mas eu compraria todos discos deles com certeza. E a cerveja era muito boa também! Hahahahahah...
Gerson olhou para Julia e riram ambos.
-Bem - disse Gerson – pelo menos disto temos certeza. Nossos excrementos e secreções naturais fazem as coisas por aqui mudarem.  Engraçado e que as vezes não acontece nada. Já tentamos orações, chamar demônios, seres espirituais, de tudo, mas parece que nada do que sabemos de ocultismo e religião mudou alguma coisa.
Julia perguntou:
-Alguém aí conseguiu marcar o tempo? Quantos dias será que ficamos naquela cabana? A barba do Norberto cresceu um pouco, acho que deve ter durado uma semana. Que coisa, é sempre assim. Parece que estamos no reino das fadas onde o tempo não corre.Nunca lembramos mesmo como chegamos aqui né? Acho que eu que estava no meu quarto fazendo algumas orações, mas não sei quando foi isto. O Marcos parece que lembra alguma coisa sobre estar na mata procurando algumas ervas, mas nunca fala nada.
Os demais fizeram silêncio e Julia percebeu que olhavam para ela.
A mulher era o calendário natural. Tinha o ciclo da Lua regulando seu corpo. Ela poderia saber.
Júlia olhou para todos, meio cabisbaixa se lembrando e disse:
-Bem, eu sinto meu peito meio endurecido. Acho que ficamos umas duas semanas por lá. Sei que parece ter sido apenas um dia. Bem, o que quero dizer que é que acho que estou para menstruar de novo, já tenho algumas cólicas. E se isto acontecer aqui neste lugar árido, sabe-se lá o que pode aparecer. Lembram-se das borboletas carnívoras que nos perseguiram da outra vez?
Ficaram quietos por um tempo, enquanto caminhavam. Logo Gerson fez o grupo parar, numa área mais abrigada.
-Bem, se a Julia vai menstruar a chance de que seu sangue, ao tocar o chão, traga algo muito estranho é maior. Então, acho que vamos nós mesmos provocar algo, que acham? Com sorte poderemos conseguir alguma coisa em que possamos estar mais seguros do que este lugar aqui.
Todos se olharam por alguns instantes e se deram as mãos.
Gerson olhou para todos e olhou para Norberto que sacudia as pernas.
Falou:
-Todos prontos para correr ou serem felizes algum tempo? Então vamos lá! Vamos tentar algo light quem sabe. Aproveitem para cuspir e Norberto: pode peidar!
Alguns passos adiante e perceberam uma luz avermelhada na encosta do lado direito.
Olharam e parecia que a terra estava se abrindo. Logo o vento trouxe o calor da lava derretida que começou a sair pela abertura. O chão tremia levemente.
Um zunido fez com que olhassem para cima. Alguma coisa muito grande voava sobre eles.
Gerson avisou:
-Pessoal, desculpem, desta vez a falha foi minha e não do Norberto. Esqueci que queijo picante com vinho me faz peidar deste jeito! Corram que desta vez deu merda!


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28/09/2012

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Desfecho



            

Desfecho
Márcio Chacon



             Seu coração batia cada vez mais rápido, suas mãos tremiam e as lágrimas dos seus olhos se misturavam com o sangue do seu rosto. Estava paralisada e totalmente à mercê daquela criatura. Como ia adivinhar que seu ente mais querido iria se transformar numa espécie de lobisomem?

            Aquele monstro faminto de olhos grandes e dentes afiados parecia ter a hipnotizado, pois a infeliz moça não conseguia se mexer, não conseguia fugir.

            Foi quando a fera chegou bem perto e a puxou pelo braço. Um puxão violento o suficiente para sentir um osso do seu braço romper e fazer aquela linda jovem gritar. Mas era em vão. Já se faziam meses que quase ninguém passava por aquela região, pois quase todos os animais já haviam sido mortos pelos caçadores.

            O feroz monstro aproximou seu grande focinho até o rosto da jovem. Seu perfume se misturava com seu sangue e isso ia aumentando cada vez mais sua fome por carne humana.


            A fera não hesitou e mordeu o pescoço de sua vítima. A triste moça teve poucos segundos de uma dor absurda até sentir uma incrível sensação de sono. Tentou juntar forças e suplicar pelo pouco de vida que ainda lhe restava. Murmurou poucas palavras do tipo, ser uma pessoa especial e que muitas gerações precisavam que ela vivesse naquele momento. Mas foi tudo em vão. A criatura continuava a morder seu pescoço de uma maneira violenta e cruel. Somente foi soltá-lá quando percebeu que a garota já estava morta.

            O monstro ficou alguns segundos admirando o belo corpo de sua vítima caída diante dele. O sangue derramado combinava com a capa que aquela garota usava. Talvez não precisasse realmente tê-la matado, mas sua fome era gigantesca. E foi então que a vovozinha, transformada em Lobo-Mau, comeu a Chapeuzinho-Vermelho.



terça-feira, 11 de setembro de 2012

Os Maus




Os Maus
Márcio Chacon

Renato conferiu o relógio mais uma vez antes de começar a guardar o material em sua mochila. O caderno foi guardado do mesmo jeito que fora tirado, pois não havia sido usado durante toda a aula de matemática. A conversa com Trindade realmente o havia afetado bastante.

Novas gangues estavam surgindo e com a prisão de Alemão havia a necessidade de um novo líder. Quando recebeu o telefonema de Trindade sabia que iria ser testado a partir daquele momento.

A gangue deles era composta por jovens de 13 no máximo 17 anos. A exceção era Trindade que completara 19 anos e até já havia sido preso por roubo. Ele poderia facilmente reunir os demais membros da gangue e se eleger como o novo chefe, mas preferiu testar Renato depois da aula.

O local escolhido foi um fliperama a poucas quadras da escola. Após a prisão de Alemão muitos garotos de uma gangue rival começaram a frequentar o lugar diariamente... Prática considerada proibida, pois cada gangue tem o seu local de encontro e isso vinha sendo respeitado quando Alemão ainda estava por perto.

Renato chegou ao fliperama poucos minutos após o término da aula.  Viu Trindade do outro lado da rua, mas não esperou por ele e entrou sozinho no estabelecimento. Esbarrou propositalmente num garoto da gangue rival e foi em direção às máquinas bem ao fundo do fliper. Antes de chegar até elas percebeu que fora seguido pelo mesmo garoto e seus amigos... Um confronto ali era inevitável.

Rapidamente e quase sem pensar, Renato tira a faca, que estava escondida embaixo de sua camisa, amarrada por um barbante. Num movimento brusco e certeiro, aloja a faca no braço do garoto desafiado, perto do bíceps. Sentiu a pele romper-se e a faca penetrar as carnes macias e quentes de seu adversário. Seguiu-se um silêncio, e quando deu por si, estava sendo observado por todos no fliperama. O menino que fora atacado, após o susto, começou a chorar copiosamente. Renato foi até a rua e procurou os olhos de Trindade, que o observava de maneira serena, quase como se ele esperasse por aquilo. Finalmente Renato havia mostrado do que era capaz. Então saiu correndo, esquecendo Trindade, a faca, e tudo mais para trás. Sentia-se quente, ao mesmo tempo com um frio no estômago. Sentia vontade de correr até o outro lado da cidade e voltar, tamanha sua energia naquele momento. E correu muito, andou mais um tanto, só voltando para casa ao anoitecer.

No outro dia, Trindade veio lhe procurar para lhe dizer algo que já sabia: Ele era o novo líder.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Realmente É Uma Pena

Commit No Nuisance
Arte digital: Allison712 (USA)


Realmente É Uma Pena
Gilberto Strapazon




Aquele padeiro tem alguma coisa de especial...



Eu me chamo Jack. É assim que todos me conhecem.
Desde pequeno sempre tive uma atração por culinária e nisto, sou realmente muito bom.
Especialmente por pães. A massa crescendo, a textura ao ser preparada, as cores que recebe ao ser assada e o resultado final, quando o pão ainda quente é devorado pelas pessoas.
Observo cada um dos seus movimentos e sei exatamente como elas são pela maneira que tratam o pão.
Muitos se importam apenas consigo e devoram sem o menor constrangimento. São assim em tudo que fazem.
Outras são piedosas e fazem uma oração ou comem cada pedaço com devoção como se fosse algo muito importante para o pão.
Aprendi estas coisas.
E descobri que nem sempre aquilo continuava depois da refeição.
Ninguém deixa um único farelo cair no chão, pelo menos acho que estão ficando educadas.
Muitas destas pessoas que parecem piedosas, logo passavam sem hesitar por cima das pessoas, eram maus chefes ou colegas.
Os que se parecem egoístas às vezes são ótimos vizinhos. Muitos participam em atividades voluntárias para ajudar os demais.

Interessante. O fermento que elas comem junto com a massa tem dado efeito.
Tenho estudado este fermento desde aquela primeira vez.
Foi fantástico.
E funciona muito bem. Sempre tem fila para pegar o pão recém-saído do forno. Nunca sobra para colocar na prateleira.
Aprendi sobre fungos, sobre bactérias, as águas usadas, a temperatura.
Fazer a massa com as mãos é uma experiência fascinante. As mãos devem estar limpas, as unhas bem feitas.
Apenas o que eu colocar deve fazer parte da massa. Um pequeno erro e os resultados serão imprevisíveis.
Observo o ciclo da Lua e até comprei uma grande fazenda com uma parte da herança que me deixaram, só para poder encontrar alguns raros tipos de cogumelos que ajudam na fermentação.
Pães exóticos, pessoas diferentes ou comuns. Tanto faz. São todos parecidos de alguma maneira.

Ouvi um barulho lá fora. É cedo ainda e os fregueses sabem que não devem aparecer aqui antes do pão sair do forno.
Saio pelos fundos, vejo a mulher caída no chão. Deve ter desmaiado.
Não tem mais ninguém na rua.
Cabelos longos, corpo generoso. Carrego-a nos braços para dentro.
Bonita, deve ter orgulho de seus traços.
Faço uma rápida inspeção por baixo de suas roupas.
Parece estar bem, está limpa pelo menos.
Os olhos estão ficando cinza. A respiração rápida mostra que ela está a um bom tempo sem comer sequer um pedaço de pão.

Elas parecem demorar a entender que precisam ter uma vida regrada.
É uma pena. Ficam bonitas e deixam tudo para sair pela noite, andam por aí.
Mas tudo tem um tempo certo.
Coloco minhas luvas, não quero contaminar a massa crua que está crescendo.
Preparo uma porção especial, com alguns grãos a mais do cogumelo que cultivo na fazenda. O crescimento é muito mais rápido que o da massa normal. As cores são sempre fantásticas, mas tenho trabalho a fazer.
Pego uma minúscula porção da massa que cresce rapidamente e toco nos lábios dela. Em alguns segundos eles mudam de cor, ficam mais vivos, ela suspira. Logo a boca se abre e engole a massa crua que já havia triplicado de tamanho no contato com a mucosa da boca.

Asso rapidamente a porção que fiz em separado enquanto tiro a roupa dela. Às vezes penso que deveria gostar disto, mas trabalho é trabalho.
Ela fez uma tatuagem na virilha.

Tiro o pão assado do forno. É bem fino, como o dedo de uma moça e o comprimento vai do queixo ao sexo da mulher.
Ela está acordando e coloco o assado já morno entre seus seios.

Demoraram uns dois segundos até ela perceber o calor na sua pele. Os olhos se abriram com de um sono profundo, suas pernas roçaram uma contra a outra.
A massa estava se unindo a pele dela.
Ela gemia enquanto os olhos gradualmente ficavam mais claros e brilhantes.
Admirei por um instante a cena, mas já estou acostumado com isto.
Logo mais ela vai esquecer-se do que houve e vai estar na fila do pão junto com os demais fregueses. Todos os dias.
Espero que desta vez aprenda um pouco mais sobre viver em sociedade e cuidar de si mesma.

Acho que as coisas vão bem. Gosto de fazer pão.
E os fregueses nunca vão muito longe.
Todos sabem que pão é o primeiro e principal alimento para todos.


.’.
28 de Agosto de 2012

domingo, 19 de agosto de 2012

Os Últimos Vampiros




Os Últimos Vampiros
Gilberto Strapazon


À medida que o grupo corria pela floresta, era evidente que os rastros das criaturas que perseguiam desapareciam a cada tronco caído, cada riacho.  Fracos sinais, mas eram suficientes.

Faltava pouco mais de uma hora para amanhecer e estavam desde as nove da noite perseguindo as criaturas. Duas delas tinham sido feridas e seus rastros mostravam que não podiam estar longe, apesar de ainda conseguirem uma pequena vantagem saltando ao esmo entre pontos da mata, cada vez mais espaçada entre as pedras do vale.
Restos de um coelho semidevorado confirmaram aos caçadores que seus alvos estavam cansados e sedentos. Não poderiam resistir muito e precisariam tentar se esconder. O vale que logo mais se abria num grande prado aberto não teria como escondê-los por muito tempo.

Encontraram um boi assustado, levemente ferido. Era evidente que as criaturas tentaram atacar o animal, mas não foram páreo para ele desta vez. Nos chifres havia marcas de sangue. A lanterna mostrou que aquele sangue era muito escuro, tinha uma consistência quase gelatinosa e com toda certeza não era do animal.
Sorriram com a descoberta e pararam alguns instantes para recuperar o fôlego. Sentiam que estavam próximos.

Eram experientes, todos eles. Treinados para reconhecer as artes das trevas e driblar todos seus seguidores que por gerações haviam infestados tantos lugares do continente.
Agora havia apenas dois. Aqueles dois.
O leve cheiro do sangue que manchava as costas do animal lhes lembrava de que as criaturas também o desejavam. Olharam-se por um instante e com a cumplicidade de uma vida de experiências juntos, todos ao mesmo tempo, passaram as mãos nas costas do animal, que agora estava mais calmo. Passaram aquele sangue bovino em suas mãos. Sabiam que a brisa levaria o cheiro à sua frente e faria as criaturas se distrair. Estavam feridas, cansadas e famintas. 

Depois de uns minutos, num pulo jogaram-se a frente com a certeza da direção a seguir. Sentiam um magnetismo que lhes mostrava a direção sem hesitar.
Agora eram como uma matilha de lobos cercando sua presa.
O vento ia à sua frente levando seu cheiro de sangue por uma ravina estreita.

Minutos depois as criaturas foram cercadas. A mulher tinha a lateral do corpo rasgada, certamente pelos chifres do boi que encontraram. Ela e o rapaz tentaram esboçar movimentos de defesa, mas cansados e atordoados pelo cheiro de sangue ao seu redor não foram suficientes rápidos para se esquivar das afiadas lâminas de todos os tipos que cortariam seus corpos em pedaços.

Os sons da carne mastigada por machados e espadas parecia o de grandes frutas esmagadas entre pedras. Os ossos que se partiam a cada golpe só não faziam mais barulho porque ainda havia energia para os últimos gritos que pouco duraram.

Os caçadores sempre cortavam a cabeça por último, pois era mais importante imobilizar a presa, evitar que corresse ou tentasse se defender agarrando-se a algo ou alguém.

O massacre iniciou. De início, curtos machados voaram certeiros atingindo as pernas e derrubando os dois no chão. Logo vieram espadas e machados que acertavam os braços e os ombros.
Tudo era feito de forma precisa. Um massacre praticado e aprimorado por gerações. Um ritual para destruição de cada parte maligna daquelas coisas malditas.

Eles sabiam o que faziam e os gritos das criaturas que caiam se debatendo com o que ainda sobrava de seus corpos, afugentava da floresta qualquer criatura ou espírito num raio de muitos quilômetros.
Horrendos, um misto de sons muito agudos de metal sendo arranhado e rasgado com arrotos demoníacos das bocas escancaradas que ainda tentavam vociferar maldições contra seus atacantes. Inúteis tentativas de invocar os senhores das trevas e as demais criaturas para sua defesa em palavras de uma língua impossível de descrever ou entender.
   
Golpes fortes abriram o ventre expondo podres intestinos recheados de coisas como se fossem vermes. Os pulmões ainda davam ímpeto aos brados que anunciavam calamidades para todos.
Eram apenas ameaças que nunca mais afetariam ninguém. Mas suficientes para enlouquecer de pavor qualquer um que não estivesse firmemente sustentado por uma fé inquebrantável. Ninguém esquecia aqueles gritos, nunca. Eram como um flagelo para a alma.

O machado abriu a virilha de uma das criaturas e destacou o que sobrou de uma das pernas. A mulher ainda tentava rolar o corpo já era reduzido a ao tórax, pedaços de seios esfacelados em tiras e uma cabeça que parecia ter se tornado apenas em boca e dentes. Enormes dentes.

Os caçadores pararam por um instante. A carnificina não tinha terminado, mas por um instante o espetáculo de carnes e ossos esmagados e o fato de serem os dois últimos exemplares de uma espécie que seria imediatamente extinta, fez-se maior e precisava ser contemplado.

Uma última visão da raça humana para aqueles seres amaldiçoados que chegaram numa estranha noite de tempestades e chuvas de meteoros, num passado muito distante. Não se sabe de onde vieram, mas tornaram-se terríveis predadores, dissimulados e muito perigosos. Misturaram-se como se forasteiros fossem. Bons negociantes, bonitos, inteligentes. Mas logo os acontecimentos e os rastros que deixavam foram revelando sua verdadeira face. Até que passaram a ser caçados e perseguidos, num trabalho de gerações.
Agora estavam ali as duas últimas carcaças imundas que insistiam em bradar a escuridão que tinham dentro de si, pois era impossível que tivessem alguma alma, exceto a treva maligna dos demônios que os inspiravam.

O sangue espalhado se misturava com a terra formando um barro negro. Os caçadores sabiam que ali nada mais brotariam por décadas.
Invocaram a proteção Deus altíssimo e sua luz misericordiosa.
Logo um machado, depois outro, abriu o peito de cada criatura e lanças ajudaram a expor o coração que ainda pulsava como se fosse um sapo deformado.
Parou de novo o massacre. O coração das criaturas parecia realmente um sapo, deformado e com partes que se moviam como se fossem pequenas patas.

Então a lamina de um machado acertou em cheio o rosto de cada criatura e cada pedaço de seu rosto e crânio foi esmagado e retalhado. Os olhos se mexeram até que fossem arrancados das órbitas e cortados com as espadas. O líquido negro de um deles escorreu dentro do resto de uma das bocas. Pedaços de mandíbula e língua mastigaram o próprio olho.
Era um pesadelo ver aquelas carnes podres e despedaçadas mastigando a si próprias.
Cortaram o que sobrou da cabeça e do pescoço esmagado e concentraram as lâminas de todas as espadas sobre os corações que foram espetados e cortados ao mesmo tempo. Os pedaços pareciam tentar pular sozinhos por algum tempo ainda.
Os machados terminaram o trabalho de destruir cada pedaço de osso que ainda estivesse inteiro.

Tudo parecia um grande caldeirão de podridão moída.

A noite era fria, saia vapor da boca dos caçadores. Mas absolutamente nenhum rastro de calor havia saído dos restos das presas abatidas. Seus corpos eram frios como a morte e mesmo os restos imóveis eram atentamente observados. Nenhum pedaço poderia escapar. Não se arriscariam com as artes do demônio.

Sentaram-se ao redor e esperaram os demais que vinham bem mais atrás.

Cerca de uma hora depois foram alcançados por um grupo maior, que trazia grandes bolsas. Imediatamente as abriram e surgiram muitos panos e pequenos barris, cheios de água que fora santificada pelos sacerdotes.
De outras vieram roupas limpas.
Todos trataram se se limpar e trocar de roupa.

As roupas sujas foram empilhadas sobre os restos lamacentos de vísceras, ossos esmagados e carnes retalhadas.
O que fora um olho pareceu se mexer debaixo de um resto de mandíbula e imediatamente gritos de alerta chegaram junto com lâminas que reduziram aquele destroço amaldiçoado a fragmentos.

Ficaram em silencio. Todos se olharam e iniciaram uma silenciosa oração enquanto três deles derramavam querosene ao redor dos restos. Fizeram uma linha circular de pelo menos um metro de largura ao redor dos restos. Dentro do espaço circular, passaram a jogar galhos secos e madeira que alguns cortaram rapidamente logo que chegaram ao lugar. E por último ao redor de tudo, um grande círculo de sal e outro de água benta de um dos pequenos barris.
O céu já estava claro e olhando na direção do sol nascente, mas sem deixar um único instante de cuidar de cada centímetro do amaldiçoado espaço clamaram em voz alta a Deus e agradeceram por terem concluído sua tarefa.
Salmos foram lidos e cânticos em hebraico e latim invocaram as forças divinas.

Mais barris de querosene foram despejados sobre a grande pilha.


Vampire Massacre
Foto: Alex Scaparro
Quando um galho em chamas voava para dentro do círculo, por um instante o caçador enxergou a ponta do mamilo da mulher que estava no meio das carnes. Dele escorria leite.


Imediatamente a chama transformou aquilo numa grande massa de fogo que se ergueu de forma assustadora como se fosse uma enorme serpente, muito acima das copas das árvores.
Clamando pelos grandes poderes da Luz, todos mantiveram uma distância segura enquanto aquela enorme serpente de fogo mudava de várias cores. Vermelho, verde até que a grande chama ficou num tom azul e seu interior parecia à escuridão da noite. Já era dia, mas assombrados todos olhavam para aquela imagem dentro do fogo, como se fosse um negro céu estrelado por alguns instantes e que se desfazia em faíscas sobre si mesmo.
Gritos terríveis eram ouvidos vindos de sob as madeiras que ardiam. Todos se olhavam em silêncio, pois sabiam pelo tempo, que aquela podridão se mantinha viva de alguma maneira até que fosse totalmente extinta e transformada em luz pelo poder do fogo purificador do Santo Deus Pai.
Por horas continuaram a colocar madeira para alimentar o fogo. E mesmo muito tempo depois que nenhum outro som era ouvido.
As brasas foram remexidas vezes e vezes sem conta. Usavam longos galhos de madeira como ferramentas e mais troncos eram colocados para queimar. 
Por causa do intenso calor, a terra sob a fogueira secou até que a areia em certas partes derretesse e formasse vidro que era imediatamente quebrado e reduzido a pó. Não podiam arriscar que algum feiticeiro ou bruxa viesse depois pegar aquele vidro para usar nalgum tipo de artes mágicas.

Assim foi por todo o dia e mais a próxima noite, apesar de exaustos, até que no segundo dia só havia uma montanha de cinzas no lugar.
Haviam se revezado na vigília enquanto alguns dormiam e se alimentavam para recuperar as forças.

A volta da presença de pássaros na floresta e outros pequenos animais foi um primeiro sinal da natureza de que as energias do lugar estavam melhores.  Nenhum animal teria ficado perto de tais forças do mal.
O lugar foi então marcado com pedras e uma grande cruz para alertar a qualquer viajante sobre o que havia ocorrido ali. A terra calcinada do lugar se tornara como areia seca.

Voltaram à cidade, cansados e pensativos. Tinham terminado com a tarefa que iniciaram centenas de anos antes e finalmente, todas suas famílias poderiam iniciar uma nova caminhada e regressar também aos seus afazeres preferidos.

II

O líder do grupo chegou a casa, sua esposa o recebeu feliz e com roupas limpas e um banho em que ele demorou-se longamente.
Estava em casa e novos tempos viriam para todos.
Ela o abraçou com uma toalha macia e secou seu corpo com carinho e afeto. Seus olhos eram doces e meigos.
O amor deles tinha começado na infância. Cresceram juntos e sua intimidade como homem e mulher era completa. Compartilhavam tudo, seus estudos e espiritualidade.
Entre carícias, conversaram sobre aquelas coisas que os apaixonados entendem sempre. Carinhosa e apaixonada ela o tocava sem pudor, sempre desfrutando de cada momento juntos para pequenas intimidades que faziam parte de uma vida feliz a dois.
Ela serviu uma refeição leve que havia preparado, com pão fresco e saladas.
Depois foram para a sala ela serviu um saboroso chá quente, de ervas e frutos da floresta, que bebeu junto dele aconchegando-se nos seus braços. 
Logo ela se enroscava abrindo o roupão dele e beijou seu corpo com uma perícia que uma vida juntos tinha enriquecido. Ambos vieram de famílias tradicionais e de longos estudos. Tinham aprendido nos grandes livros sagrados e estudado o Amor nas suas várias formas mais elevadas.
Satisfez-se com o corpo dele que tremia de prazer a cada beijo e carícia.
Puxou-o pela mão e fez com que se encostasse à parede, pegou um dos seus belos chapéus de caçador e colocou sobre sua própria cabeça. Os cabelos longos davam um toque sensual para seu belo corpo. O chapéu contrastava com sua pele branca e macia e dava um aspecto bastante exótico.
Ela abriu seu vestido encostando-se a ele toda. Acomodou cada parte do seu corpo junto ao dele.
Beijou-o longamente contra a parede e desceu pelo seu corpo. Beijou e sugou cada centímetro de sua pele tocando-o com maestria. Logo recebeu seu gozo entre gemidos e suspiros de satisfação.
Ele tremeu e por um instante veio a sua lembrança a imagem daquele mamilo na fogueira, jorrando leite sem parar. Donde viria aquilo se nada havia além de uma lasca de pele? E jorrou até que a chama o reduziu a cinzas.
Distraído pelo prazer que recebera e pela lembrança inesperada, olhou para sua esposa.
Ajoelhada, com a boca úmida, ela abraçou suas pernas, encostando seu rosto contra o corpo dele enquanto continuava a beijá-lo.
Olhou para ele, seu rosto era uma expressão de satisfação e alegria. Os lábios molhados brilhavam.
Ela olhou para ele e disse:
-Adoro quando você me alimenta desta maneira.
Ele suspirou enquanto ela se levantou lentamente lambendo seu peito e empurrando seu corpo contra o dele. O cheiro de sexo tomava conta de tudo e ela usava um perfume que ele nunca soube dizer o que era, pequenos segredos de mulher. Era inebriante e muito convidativo.
Então ela pegou na cabeça dele, afagando suas orelhas e cabelo e beijou-o longamente de novo enquanto colocava a mão no bolso do vestido que apenas desabotoara pela frente. 
Ela colou a boca no seu ouvido, a outra mão segurava a cabeça dele, sussurrou.
-Estou orgulhosa de você. Sempre me alimentou como gosto, com teu prazer, e agora, me trouxe esse presente. Todos estarão tranquilos e vão esquecer para sempre aquelas criaturas.
Ela esfregava o sexo nele e sem que ele notasse, tirou um revólver do bolso do vestido.
De olhos fechados ele escutou satisfeito ela dizer que ia usar seus brinquedinhos, e sem perceber a arma, pensou que isto significava uma noite inteira de satisfação e fetiches com ela.
Mordiscando o rosto dele de leve e beijando seus olhos para que ficassem fechados, ela subiu o cano da arma aquecido pelo seu corpo até encostar debaixo do queixo dele que pensou ser uma das tantas brincadeiras que praticaram desde a adolescência quando começaram a namorar.
Então firmando um pouco mais a mão que segurava o cabelo dele e mantinha a cabeça em posição vertical ela olhou nos olhos dele e falou:
-Meu querido obrigado pelo seu sêmen, eu não preciso de dentes para me alimentar de vocês, humanos. Nenhum de nós. Aqueles dois que você pegou, foram os últimos da espécie que podia ser reconhecida pelos humanos.
O tom de voz havia mudado e subitamente parecia sarcástico e cortante como uma lâmina enferrujada. Apertou a cabeça dele contra a parede e olhando de frente disse:
-Nós evoluímos meu querido!
Ele lembrou do mamilo.
Num último momento ela viu nos olhos dele que tinha compreendido. Foi uma vida de espera as escondidas! E ela o pegara totalmente desprevenido. As pupilas dele se arregalaram. Então a bala atravessou seu queixo e arrancou o topo da cabeça.
Ela baixou a arma e usando apenas a outra mão mantinha o corpo em pé segurando pela lateral da cabeça.
Olhou por um instante a cabeça aberta ao meio. O topo do crânio tinha explodido pela parede até o teto
Então o puxou para si e juntando as duas mãos e bebeu dos restos de cérebro exposto pela bala.

Depois colocou a arma na mão dele e deixou o corpo cair sobre o seu. Ele era grande e muito mais pesado que ela. Explodiu em gritos tentando segurá-lo, mas o peso todo desmoronou e ela caiu junto ao seu lado enroscada no corpo ensangüentado já perdendo o tom de voz num choro convulsivo.


Alertados pelo barulho de um tiro na casa, os vizinhos chegaram correndo e entraram pela porta aberta.
A linda esposa do líder da comunidade chorava desesperada, completamente histérica agarrada ao corpo ensanguentado do marido que havia se suicidado na frente dela.
Gritava coisas sem sentido a coitada tentando ergue-lo. A cena era terrível e desesperadora. Rapidamente toda vila ficou sabendo do ocorrido e as pessoas chegavam horrorizadas.
Todos choravam tomados pela dor de tamanha tragédia e ninguém conseguia afastar a mulher do corpo já inerte.
Foi um longo tempo de tristeza no coração de todos e nenhum dos presentes esqueceu a imagem daquela coitada, belamente vestida e maquiada para seu marido, que misturada ao sangue dele se transformara no mais completo horror que uma perda tão terrível pode representar.

III

Eram o casal mais conhecido de toda região, apaixonados um pelo outro desde a infância e só tinham olhos um para o outro a maior parte do tempo.
Ela já havia falado muitas vezes ao sacerdote em confissão, sobre a preocupação de seu marido em tirar alguma vida, qualquer vida, mesmo que fosse a serviço do Senhor. Eram ativos membros da comunidade religiosa. Todos apreciavam seus conselhos e o seu próprio exemplo de vida feliz.

Mas ao regressarem da caçada, entre as comemorações pela destruição daquela espécie maldita, os mais próximos se esqueceram de que talvez ele não suportasse a sensação de culpa depois daquela última carnificina.
Todos lamentaram muito junto com ela, que nunca mais casou e mudou-se com toda sua família para bem longe dali.  

Todos compreendiam. E talvez a tragédia tenha seguido a tristeza que se abateu sobre aquela mulher, pois nos locais para onde foi com sua família, aconteceram epidemias de algum tipo de peste, novos tipos de gripe surgiram. E que dizimavam as pessoas.

.'.
Gilberto Strapazon
15/08/2012
http://gilbertostrapazon.blogspot.com


Arte: Adam Hughes


.'.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Dança Fúnebre




Dança Fúnebre
Cristiano Silva



Pobre do Arlequim

Que vive sem sua concubina

Alegra a todos sem poder se alegrar

Uma folha branca suja com nanquim.


E na alegre distração teatral

Seu sorriso anti-divinal

A alegria forçada perante a guilhotina

Nesta dança fúnebre.


Sua cabeça rola, feliz Arlequim

Alegria misturada com tristeza

Uma cabeça posta em uma bandeja

Um sorriso sarcástico a nos mirar.


A sensação estranha

De que em algum momento

Talvez em nossos sonhos

Nosso lunático amigo.


Nosso Arlequim

Venha com um sorriso sádico

E sua lâmina nos visitar.

-o-


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Super-Herói



Super-Herói 
Márcio Chacon



Já era tarde, mas a festa prosseguia bastante animada. Ela era a rainha da noite. Sua fantasia de Mulher Maravilha brilhava de longe e chamava a atenção de todos. Ela sabia que o foco de atenção estava todo canalizado nela. Seu corpo atlético era desejo de muitos naquela boate.
Nossa cobiçada heroína foi passeando lentamente até o bar onde pediu uma bebida.  Um Coringa apareceu totalmente embriagado e sentou ao seu lado. Sua pintura no rosto estava totalmente borrada. O suor havia destruído por completo sua demorada maquiagem e a cerveja já afetava seu modo de andar. Mesmo num estado lastimável aquele homem se ofereceu para pagar um drinque. Nossa Mulher Maravilha segurou o riso e aceitou que ele arcasse com a despesa. Assim que o barman chegou com os drinques ela pegou seu copo e deixou o pobre coitado falando sozinho.
Saiu do bar e foi desfilando com o copo lentamente pela pista de dança. Sua roupa brilhava tanto como as luzes daquela boate. Achou uma mesa vaga e sentou depois que acomodou o copo gelado ao lado do celular. Fitou alguns rostos, mas não achou nenhum interessante.
Um mascarado usando uma fantasia amarela apareceu e perguntou se gostaria de dançar. Nossa bela heroína chegou a pensar por alguns segundos tentando descobrir que personagem seria aquele, mas respondeu algo mais apropriado para aquele momento... Uma leve mentira:
- Não posso. Meu namorado está vindo.
Isso bastou para o mascarado sumir na multidão. Ela conferiu o celular mais uma vez... Recebia mensagens a todo instante.
No momento que estava deletando alguns recados outro herói apareceu. Ele era alto, magro e tinha olhos tão lindos quanto os dela. Usava uma fantasia de Super-Homem e tinha uma tatuagem tribal muito bonita na sua mão direita. Ele era bastante interessante e nossa heroína adorou sua abordagem. Aquele belo herói lhe deu uma rosa e pediu permissão para sentar ao seu lado. Cochichou no seu ouvido uma cantada meio infantil, mas que saiu até bonitinha para o momento. Algo do tipo ser especial, ser a escolhida, ser sua rainha para voarem juntos e conquistarem o universo. Aquilo já havia sido suficiente para trocarem alguns beijos.
Não havia mais necessidade para uma conversa até porque a música alta atrapalhava o diálogo e o entendimento das palavras que aquele Super-Homem dizia. Entre um beijo e outro veio o convite para saírem dali.
Ele sugeriu irem ao seu apartamento que ficava no décimo andar do prédio ao lado. A noite estava perfeita e sua sacada tinha uma vista linda.
Ela abraçou aquele Super-Homem e ambos saíram juntos da boate até o prédio do outro lado da rua.
Rapidamente entraram num prédio deserto e pegaram o elevador até o décimo andar. Dentro do elevador nossa heroína conferiu mais uma vez os olhos do seu Super-Homem. Eles já não brilhavam mais como antes. Talvez por causa da iluminação da boate ou talvez pelo efeito temporário de alguma droga que ele tivesse usando, mas quem se importaria com isso? Ele era lindo.
Assim que entrou no apartamento nossa Mulher Maravilha percebeu que não havia móveis nele. Havia apenas algumas caixas de papelão ainda lacradas. Rapidamente presumiu que aquele homem estaria se mudando.
Ele então abriu o vidro de sua sacada e a chamou para admirar a vista. Ela imediatamente foi até ele e enxergou uma noite linda, fria, silenciosa e muito bem acompanhada de uma lua que parecia ter sido desenhada para eles. Nosso herói tocou seu pescoço, acariciou seus cabelos e disse a coisa mais insana que alguém poderia dizer naquele momento:
- Voe.
Nossa Mulher Maravilha não entendeu bem a ordem, mas não disse nada. Apenas fez uma cara de alguém boiando na conversa.
Aquele homem mudou... Enfureceu-se. Puxou uma faca afiada do bolso, pressionou sobre seu rosto e gritou:
- Eu quero que você voe, Mulher Maravilha!
- A dor da lâmina entrando no seu rosto era forte e real. Aquilo era real. Não sabia o que fazer. Algumas lágrimas começaram a rolar sobre seu rosto e se misturar com o sangue provocado pela lâmina.
- O que você quer? Por que está fazendo isso?
- Eu sou o Super-Homem e você é minha rainha, mas para ter certeza eu preciso que voe pra mim.
A dor no seu rosto era gigantesca. Olhou para a rua, olhou para a boate... Ninguém ia escutar mesmo que gritasse. Além de estar longe a música da boate era muita alta e ninguém escutaria seu pedido por socorro. Segurou o choro e murmurou:
- Mas eu não sei voar.
- É claro que sabe. Você é a Mulher-Maravilha. Você é a minha rainha. Sabe quantas mulheres precisei matar para chegar neste momento? Muitas morreram no passado. Muitas foram reprovadas por mentirem. Não passavam de vagabundas usando a roupa da minha Mulher Maravilha... A sua roupa.
Neste exato momento nossa heroína percebeu que aquele homem era completamente louco e que tudo que falasse para ele seria em vão. Lentamente afastou a lâmina do seu rosto e subiu na pequena mureta da sacada. Olhou para baixo e simulou uma preparação de salto. Seu corpo tremia, seu rosto já estava totalmente pintado de sangue. Talvez no pior momento da sua vida também tenha surgido a melhor e mais absurda das idéias que já tivera:
- Eu não posso voar.
- Por que não?
- Eu sou sim a Mulher Maravilha, mas nunca voei. Assim como o Batman e o Robin. De todos os heróis que conheço o único que sabe voar é o Super-Homem.
O olhar daquele homem mudara. As palavras dela realmente haviam afetado sua mente insana. Ele estava em dúvidas. Pensou por breves segundos, jogou fora sua faca e disse:
- Então eu vou saltar.
Nossa heroína permanecera em silêncio. Sabia dentro dela que o havia vencido. Usara uma resposta maluca para derrotar um homem maluco.
Aquele homem subiu na mureta posicionando-se bem ao seu lado.
- Vou te provar que posso voar. Que eu sou o Super-Homem.
- A Mulher Maravilha sorriu... Não por acreditar naquela afirmação, mas pela certeza que estava salva daquele doido. Aquele desgraçado jamais sobreviveria com a queda. Sua felicidade era a morte daquele homem.
- Aquele Super-Homem olhou para a lua e esboçou um salto. Parou e voltou a olhar para nossa heroína. Seus olhos voltaram a brilhar como antes na boate. Ele sorriu e perguntou?
- Quer voar comigo? Eu te levo.
E antes dela dizer não ou dela pensar em fugir dali... Antes de qualquer reação, aquele homem a puxou pelos braços e saltou. E então ambos caíram.

Sólidos Pensamentos





Sólidos Pensamentos
Cristiano Silva



Eu em meu recanto mais pacato


Na ausência de um amor


Fico horas admirando a paisagem


Marcas dos dias que vão com minha paz.


Na chegada noturna

Sólidos pensamentos em temor

Um pesadelo me atormenta de passagem

Fico em transe imaginando uma viagem

E ao meu redor um novo mundo se faz.


Intolerante como a luz clara escura da lua

Que ilumina as sombras espectrais

Vultos aterrorizam em minha retina

Adrenalina, opio, morfina, loucura

Gritos súbitos do perigo de um monstro atroz.


Que aterroriza a todos

Na passagem para a realidade

Quando a umbra se desfaz

E volto à realidade.


Com as mãos manchadas de sangue

Pedaços expostos em todos lugares

A sensação da monstruosidade

Que habita no íntimo de cada ser.



sábado, 30 de junho de 2012

Bocas Vendidas





Bocas Vendidas
Gilberto Strapazon


O Oitavo Círculo do Inferno chama-se Malebolge (fraude), é todo em pedra e da cor do erro, assim como a muralha que o cerca. Aqui estão os fraudulentos. Este círculo está dividido em dez fossos(ou Bolgias).
O Quinto Fosso é a Vala dos corruptos. Nele os corruptos estão submergidos em um piche fervente; os que tentam ficar com a cabeça acima do caldo são atingidos por flechas atiradas por demônios. Em vida, os corruptos tiraram proveito da confiança que a sociedade depositava neles; no inferno estão submersos em caldos, escondidos, pois suas negociações eram feitas às escondidas.



I

Entre as grandes mesas da enorme biblioteca, ela sentou e olhou curiosa para aquele livro que havia encontrado na seção de textos antigos.
Trabalhava ali fazia muitos anos, lia de tudo, então sempre tinha uma ponta de curiosidade sobre o que iria aprender desta vez.
Os dedos finos e delicados tocaram a velha capa de couro. Tinha cantoneiras em metal trabalhado. A luz da manhã dava um colorido especial, era uma peça de artesanato muito antigo.
Abriu o livro e olhou as antigas páginas. Era um manuscrito, mas com letras muito claras. Abriu uma página ao acaso no meio do livro e leu as palavras que logo chamaram sua atenção... Pareciam recentes. A tinta parecia ainda brilhar no pergaminho já amarelado...

O texto parecia sair da páginas e falar com ela, as palavras soavam em seus ouvidos:

Então você chegou. Seja bem vinda minha cara.
Você chegou aqui e não foi por acaso.
Vi quando procurou a página certa, vasculhando entre todos os livros.
Quantas vezes olhei você esquecer o trabalho que deve realizar enquanto se esfregava com seus colegas idiotas entre as prateleiras? Pratique, mas não esqueça o porquê.
Desfrute das palavras. Está vendo aquele rabisco no canto dessa página? Foi seu antecessor que deixou para avisá-la. Ele sabia que não teria tempo e deixou um aviso. Veja os outros também.

In a Library
Arte:
situo

Estou esperando você desde seu primeiro sangramento. Eu estava lá e bebi sua respiração ansiosa!
Vi sua expectativa pelo que viria depois e induzi todos seus sonhos para que descobrisse seu corpo e aprendesse suas artes.
Ajudei seus professores para que a deixassem em paz. Eles só têm palavras humanas e ciências caóticas que iludem sua raça miserável. Mas serviram para alimentar seu corpo e fazê-la obediente ao serviço que deve cumprir.
Todos seus espaços são meus. Sua pele me pertence. Traga-me o suor deles para que junto com os fluidos do seu corpo alimentemos a criação.
Vejo você ao acordar e embalo suas noites. Desde sempre você foi treinada para isto.
Quando você abraça qualquer sujeito, sempre acha maravilhoso não é?
Nunca percebeu que sempre sou eu que estou ali?
Você os manda embora porque qualquer motivo.
Mas nunca percebeu o quanto todos são maravilhosos abraçando seu corpo? Nunca percebeu que nenhum deles fez falta ou deixou saudade simplesmente porque sabe que é assim. Sempre será completo.

Guardei seu cordão umbilical e desfrutei do sangue que sua mãe lhe deu.
Alimentei os cães e rasguei as roupas daquelas freiras que visitavam sua casa. Inúteis sanguessugas! Elas nem ao menos souberam como chicotear sua pele direito.


Lembra-se das visitas aos domingos quando sua mãe saía com seu pai?
Eu estava lá muito antes, quando você foi feita. Aproximei os dois até que um dia e eles viajaram para o sul.
Chovia muito pela manhã e fiz seu pai errar o caminho. Eram jovens e gostaram da paisagem tranquila do lugar quando o sol iluminou tudo.
Fiz o pasto e a relva entre as árvores pulsar com a força da vida. Encontraram o recanto que escolhi perto do lago da grande pedra.
Montaram a barraca e ficaram ali por vários dias. Ela se divertia quando amava seu pai entre os bichos da floresta que vinha até bem perto para olhar. Hippies de cidade e suas drogas... Acham que tudo é normal e bonito. Ela nem percebia a diferença entre seu pai ou um dos javalis que a tocavam.
Juntei todos eles para fazer você. Seus olhos de lebre, suas orelhas de cervo, suas pernas delicadas e seus ouvidos apurados como os de um cão.
Fiz com que passassem muito tempo na caverna da pedra grande. Acharam que tiveram sorte por tantas coisas que encontravam. Não tinham lanternas para entrar e explorar, mas meu cachorro fiel sempre esteve cuidando da entrada.
Para ela foi apenas um cãozinho. Tão dócil e de pelo tão macio, quente, carinhoso. Misturei as plantas necessárias ao café que faziam para assegurar que as drogas mundanas que usavam não tivessem efeito. Troquei-as por outras feitas com as pedras do lago e as raízes dos cogumelos que os elementais buscaram ao meu pedido.
Tudo parecia normal para ela. O vinho, os carinhos do seu pai e o cachorro lambendo sua nuca.
Fiz soar o trovão quando o momento certo chegou. Os grandes olhos vermelhos do cão cintilavam de alegria. O céu da noite sem lua brilhava muito com as estrelas cadentes que corriam sem parar.
A senhora do lago saiu de seu refúgio para ajudar no instante final. O corpo de sua mãe foi lavado com os fluidos de todos os seres. Alimentou-se de nós por toda noite.
Ela foi boa. Dei-lhe a tatuagem da união.

Lembra-se das tatuagens que escolhi para você? Nunca mais cortou o cabelo, deve ter se esquecido das que circundam sua cabeça. Mas as pequenas junto ao seu sexo, você aprendeu rápido a tirar proveito. Quando chegou a hora seu primeiro namorado percebeu apenas quando era tarde demais.
Ele fez um bom serviço, poderíamos tê-lo usado por mais algum tempo. Dane-se ele e aquela ponte onde se jogou. Ele ainda tinha alguns textos para traduzir para você. Mas ninguém pensou em associar um cientista de 60 anos e uma adolescente e foi oportuno também. Você sabe como foi produtivo ter ido ao velório dele como se fosse uma funcionária qualquer. Aqueles três catedráticos e a deputada que você enlaçou juntos dentro de você entre as tumbas lá do fundo foram uma boa aquisição para a lista. Eles ficaram contentes por não ser um enterro chato.
Lembra agora dos outros que você conheceu através dele? Trabalho bem feito ao ganhar a confiança de cada um e torna-los confiantes nas pequenas festas que você aos poucos foi criando para que ficassem a vontade juntos e sem pudores para falar abertamente enquanto se satisfaziam.
Valeu a pena as marcas das palmadas e atender as volúpias daquelas arrogantes que se satisfazem com tão pouco. Uma carreira por um mimo qualquer.  Tolas explorações pervertidas no teu corpo todo em troca de confidencias de estado. Não tem muita diferença venderem a própria boca por tostões ou pelo prazer do teu corpo não é?
Vê aquela figura ali? Leia a legenda, em que ano foi feita aquela velha casa. Ali treinamos alguns que vieram antes.
Esperamos você todo este tempo que não é nada para nós. Desde o princípio oferecemos a verdade, mesmo que tenhamos que usar alguns ardis de vez em quando.
Você vai gostar das paredes de pedra e dos pequenos túneis que levam ao espaço de trabalho, com a raiz da grande árvore que atravessa aquele espaço. Existem vários.
Agora você chegou aqui para encontrar a verdade. Seu corpo foi alimentado e preparado. Leve o Livro para continuar seu trabalho.
Onde estão aqueles cientistas e doutores que indiquei? Está chegando a hora de mais um passo na caminhada.
Sinta o cheiro de fel e sangue nas páginas. Reconhece a tinta? Lembra quantas vezes lhe mostrei como escrever escondida com seu próprio sangue, após ter dado prazer a si mesma durante os períodos em que a Lua faz a limpeza do seu corpo? Cada um dos textos e símbolos tem sido desenhado nos lugares certos, nos templos e lugares sagrados das pessoas.
Isto minha cara. Achou... Essa é a página em branco. Ela é sua. O que espera encontrar se estou sempre ao seu lado?

Agora é sua primeira grande iniciação. Seu grande ritual de passagem. Vim para trazer a Luz e não para satisfazer toscas pretensões. Essa raça ainda estaria nas cavernas disputando ossos.
Prepare aqueles homens e mulheres. Todos eles.
São intelectuais, vão gostar de conhecer a gruta da velha casa. Fale das raízes muito antigas que serpenteiam entre os túneis. Lembre-os do ambiente íntimo e aconchegante que pode ser quando estão com você.
Não se esqueça do velho reitor e seu assistente. Você sabe como ser boazinha para eles e suas perversões. Estarão ansiosos por acompanhá-la.
Não se preocupe com as espertinhas do instituto de pesquisa. Elas pensam que vão ser o centro das atenções com seus dotes recatados. Farei com que sejam. Também.

II

O churrasco na grande fazenda tinha sido muito bom para todos. O assistente do reitor tinha contratado uma equipe para cuidar de tudo. E nem gastaram tanto. A bibliotecária tinha o cartão de uma empresa especializada. 

Era bom saírem da cidade para algum lugar assim, retirado. Todo cientista importante como eles deveria ter essa possibilidade, pensavam. Afinal, recebiam muito dinheiro pelo seu trabalho e podiam dar-se ao merecido luxo e deixar as coisas banais para as pessoas comuns.
E ninguém sentiria muita falta deles hoje. Aquela conferência ambiental era uma chatice mesmo. Eles já tinham enviado seus trabalhos para apresentação. Só iriam lá para alguma entrega de prêmios e troféus.
Mas desta vez a imprensa estava mais interessada em balelas sem importância e papo furado dos fracassados que não eram tão inteligentes ou espertos para cuidar da própria vida.

A paisagem era magnífica. As árvores e a relva pareciam muito mais coloridas por causa do sol quente. Bebiam, conversavam, dançavam. O velho casarão era um pequeno achado. Ninguém soube precisar sua idade. As grossas paredes de pedra, o estilo do telhado muito inclinado, os três andares com pequenas janelas entre as muitas chaminés eram um convite à exploração. Andavam pelas muitas peças decoradas com cortinas e tapetes finos.

De vez em quando algum deles cruzava com aquela bibliotecária miudinha que já fazia parte da turma há muito tempo.

Apocalypse
Arte: FluffyNucleargarden

Era jovem e bem torneada. Mas ninguém sabia ao certo sua idade, 30 talvez 40. Mas parecia ter 20 pela disposição. Eram todos íntimos e ela tinha aproveitado o dia ensolarado e usava um vestido de alcinhas. Acariciava um e outro abertamente como já tinham feito tantas vezes.
E o dia era especial. Talvez fosse a primeira vez que todos estivessem juntos. E ali era bem reservado e distante. Sempre faziam alguma coisa em grupos menores. As doutoras estavam radiantes entre si ou com vários homens e mulheres ao redor de cada uma.
O cheiro de sexo e bebidas corria por toda casa. Apreciavam os belos quadros antigos, que pareciam ter vida própria enquanto se acariciavam. Ou conversavam sobre algum projeto comendo pedaços de carne assada.
A bibliotecária passava de mão em mão, todos sabiam que ela era a escrava deles. Fazia tudo que queriam sem nunca recusar nada. Obediente. Alguns pensavam se ela era contorcionista por tanta elasticidade e resistência. O rostinho tinha um jeito que lembrava os orientais e sua doçura. Talvez fosse nórdica. Sim, ela tinha o jeito das mulheres nórdicas.
E era inteligente o suficiente para conversar sobre o que faziam, mas parecia não se interessar muito. Pelo menos ficar lendo na biblioteca para passar o tempo tinha alguma utilidade também.
Definitivamente ela era uma serviçal completa. E sabia mexer no computador para tudo que quisessem. Se tivesse um pouco mais de iniciativa poderia trabalhar nalguma grande empresa. Mas a única iniciativa que ela parecia ter era para servir a todos.

III

No meio da tarde, alguns encontraram uma sala no terceiro andar. Era em estilo medieval muito antigo. Tinha pesadas poltronas, uma mesa com tiras de couro. Apenas uma pequena janela.
Logo mais comentaram do achado numa das salas. As pessoas falavam alto agitadas, divertindo-se com o achado.
A bibliotecária falou que talvez fosse um antigo calabouço, mas não entendia porque ficaria no terceiro andar. Ainda mais, comentando por acaso, quando tinha algumas grutas embaixo da casa, ligadas por túneis antigos que eram muito aconchegantes e com diversas raízes dos antigos carvalhos que rodeavam o casarão passando pelas paredes.
Grutas?
Todos olharam para ela tomados pela pouca curiosidade científica que ainda tinham e pela expectativa de visitar um lugar realmente diferente.


Abandonai toda a esperança vós que entrais!
A Porta do Inferno – Dante Aleghieri – A Divina Comédia


Logo todos desciam com suas bebidas conversando e rindo alto por uma escada que começava numa gruta de uma grande pedra ao lado da casa. Era perto do belo lago que havia na propriedade e ninguém havia percebido quando vieram do outro lado.
Com certeza o local era magnífico e bem reservado. Já tinham visto vários animais selvagens de todo tipo por ali. A natureza era para poucos privilegiados com certeza!
Havia algum tipo de iluminação natural que se infiltrava nos corredores talvez naturalmente esculpidos.
Grossas raízes apareciam pelas paredes de um lado ao outro. O local tinha uma temperatura morna, muito agradável e à medida que andavam pelos corredores, passando por várias câmaras, uns e outros, alguns meio nus ou apenas com uma bermuda cruzavam com as mulheres do grupo que estavam satisfeitas no controle da situação.

Elas iam se acariciando entre si e com aquela "empregadinha" como a chamavam, por preferirem uma mulher ou para fazer algo diferente ou só por diversão. Ela parecia gostar de tudo, quieta ou muito sorridente, rindo alto às vezes, mas sempre esperando que alguém desse as ordens. Recebia palmadas e objetos em seu corpo como se fosse uma criança ganhando um presente. Realmente ela era submissa e servil como deveria ser uma boa funcionária.

Nas poucas vezes que ela parecia tomar iniciativa era sempre para estimular os demais. Fosse servindo bebidas sem esperar ordens, ou arrumando a casa toda numa visita, ajudando no laboratório deles ou pondo o maldito computador em ordem. E ainda satisfazia o que fosse. Como atender algum visitante ou representante daquelas empresas que vinham discretamente.
Era ótimo como ela acabava ajudando naquelas situações. As negociações deixavam de ser chatas e todos se divertiam muito. O cheque geralmente acabava sendo maior. E ninguém se preocupava mesmo. A funcionária gostava de ser usada e depois deixava tudo arrumado. Era discreta, nunca aparecia fora daqueles momentos e ninguém nem sabia que eles a conheciam. Perfeito! Uma putinha anônima que não constrangeria ninguém. Devia ser alguma coisa do sangue dela.
E claro que eles tinham verificado sobre a vida dela. Não dá para arriscar a operação sem chamar um detetive de confiança. Mocinha comum, pais estudantes. Os detetives varreram a vida dela. Assistente de um e outro professor, nenhuma aspiração política, igreja, nada. Mas gostava de sexo e cozinhava bem. Era o bastante.

O grupo parecia ter gostado dos recantos entre os vários corredores da gruta. Eram ótimos para uma reunião informal como aquela. As raízes com formas elaboradas eram lisas e serviam como apoios para todas as posições sexuais que pensassem. Até para a bibliotecária se esfregando com o cachorro.


Estavam numa das cavidades um pouco maiores. Uma das paredes parecia ter mais raízes que as outras. A cavidade era como um pequeno salão que se alongava um pouco para outra passagem mais escura, a luminosidade era suficiente para enxergar bem o que acontecia. Parecia ter algum tipo de placa muito velha e gasta no teto da passagem, mas ninguém perdeu tempo tentando ler aquilo.
Ninguém viu donde ela trouxera o cachorro, com certeza ele era da casa. Não dava para saber a raça, era grande e com pelo negro muito lustroso. Talvez fosse um dinamarquês ou algo assim, pois era quase do tamanho da bibliotecária. Era bem característico dela tomar essas pequenas iniciativas. Ela não tinha muitas, mas sempre eram criativas e bem vindas, como um chá feito na hora certa.

Ela podia ser limitada, mas com certeza a safada gostava daquilo. Uma das raízes parecia um enorme falo ereto saindo de uma parte mais baixa da pedra. Ela sorria olhando para todos enquanto roçava o enorme mastro entre as nádegas. Olhava para todos sorrindo enquanto o cachorro voltou a se esfregar nela. Ela se ajoelhou embaixo dele e dizia para todos aproveitarem, pois iria ficar muito melhor. Tinham todo tempo do mundo, que aproveitassem do fruto das suas obras.
Os olhos do cachorro tinham aquela cor vermelha de quando refletem a luz. Mas todos estavam muito bêbados ou ocupados para analisar o ambiente.
Sim, todos sabiam que mereciam desfrutar aqueles privilégios. Faziam tanto por isto!
Ela levantou-se, o sêmen do cão escorria pelas suas pernas, pegou o cientista mais próximo pelo membro ainda ereto, e rindo muito foi levando-o para a outra passagem mais escura. Bolinou uma das mulheres que puxou a outra e todos meio abraçados logo continuaram sua caminhada ansiosos por mais diversão.
Foram adentrando no corredor adiante, observados pelo cão que havia ficado sentado junto das raízes.

O silêncio aos poucos voltou a reinar. Algum tempo depois a bibliotecária voltou. Sózinha.


Fez um afago no cão que lambeu sua mão.

Ela estava sorridente e relaxada. Olhou para o grande animal e disse:

-Bom trabalho Cérbero.



Epílogo


Apagão 4
Foto: Fernando Freitas
Alguns dias depois o jornais noticiavam a respeito do andamento de mais um encontro de governantes de vários países para debater aspectos socioambientais.

Porém não houve informação sobre alguns cientistas de vários países, empresários e políticos que eram esperados e deixaram de comparecer sem aviso.

Isto mudou um pouco o tom dos debates, pela ausência de vários críticos e céticos das questões abordadas.

Ninguém quis fazer comentários a respeito. Vários dos que não compareceram estariam sob a suspeita de manipular resultados para favorecer resultados comerciais.

Por coincidência, o grupo faltante costumava conseguir espaço em jornais, revistas e programas de televisão declarando publicamente que o aquecimento global seria uma grande bobagem e que a poluição não é grave e que a destruição abusiva e descontrolada dos recursos naturais não teriam qualquer influência sobre o clima do planeta. Alegavam que tudo seriam ciclos naturais e que a raça humana não teria influência nenhuma em quaisquer mudanças. Ao contrário do que os estudos da ONU e vários grupos internacionais indicam.

Algumas grandes corporações que haviam patrocinado eventos culturais destes cientistas foram procuradas pela imprensa negaram ter qualquer outro tipo de contato com estas pessoas, em momento algum. E nem que soubessem de suas atividades.


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15/06/2012
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