quinta-feira, 31 de maio de 2012

O Guardião da Fogueira

Symphony of fire
Imagem: plus-i-minus



O Guardião da Fogueira
Gilberto Strapazon



Sujeito descuidado, não sabe o que posso fazer com ele.
Custava ter avisado antes?
Chega assim sem mais nem menos e pensa que foi pouco?
Pelo menos sou um sujeito calmo.
Deve ser a vida no campo.
As pessoas não sabem apreciar isto.
Todo dia levanto e faço uma hora de yoga.
Nado um pouco no pequeno riacho aqui atrás da casa.
A água fria harmoniza todos os chacras.
Às vezes tiro uma folga e faço uma caminhada pela mata até a cascata mais acima.
Olho o ciclo da natureza e como as coisas estão relacionadas.
Aproveito para olhar o que sobrou da fogueira da última lua cheia.
Foi um ótimo encontro.
Todos dançaram e fizeram seus pedidos aos deuses da natureza.
As sacerdotisas sempre fazem seus cantos dionisíacos.
Cantamos, dançamos, bebemos.
Depois todos participaram juntos de um grande orgasmo cósmico.
Nada pode atrapalhar estes momentos de gratidão e celebração junto à natureza.
Isto é magia.
Mas quem poderia esperar que logo aquele convidado achasse por conta própria que poderia trazer energias contrárias à ordem natural e perturbar um momento tão sagrado?
Logo no rito de Baco!
Apenas observei enquanto os sacerdotes e as ninfas corriam nus atrás dele, carregando archotes em brasa.
Mas vi quando ele entrou naquele lugar e ficou ali.
Não falei nada nestes dois dias em que ainda procuram por ele.
Sorte dele que sou um cara calmo.
Se eu não fosse um cara pacífico arrancaria ele agora mesmo daquele rolo de arame farpado que caiu dentro da colheitadeira e lhe daria uma boa lição.
Volto para o bosque. As flores estão lindas nesta época.
A lua está propícia e amanhã começa a colheita.



.’.

Gilberto Strapazon
28/05/2012

http://gilbertostrapazon.blogspot.com

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Um Dia no Escritório




Um Dia no Escritório
Gilberto Strapazon


O clima na sala era silencioso e pesado.
A fumaça dos charutos subia até o teto.
Poucas cadeiras, quadros nas paredes encardidas.
Uns estavam encostados na parede pensativos.
Outros sentados olhavam com as mãos trêmulas.
Concentrado em seus pensamentos, o chefe lia as mensagens que chegavam ao computador.
De vez em quando bebericava seu whisky que alguém imediatamente tratava de repor no copo.
O silêncio só era quebrado pelo monótono som das teclas de vez em quando.
Do outro lado um dos assistentes não conseguia disfarçar seus joelhos tremendo.
Sentada logo atrás do chefe, a mulher apenas observava de perto.
Já era madura, tinha um jeito interessante. Cabelos curtos. Quadris definidos e seios fartos que fariam a alegria de qualquer um.
Roçando de leve o peito no braço dele que parecia não sentir sua presença.
Ela ignorava todos na sala sempre que fazia aquilo. A estreita calcinha aparecia por cima da calça de cintura baixa. 
Preta, com rendas e flores bordadas.
A pele branca dava a ela um jeito meio espectral.
Por causa da fumaça os quadros nas paredes tinham uma aparência estranha nas expressões.
Todos sabiam dos olhos que se moviam, mas ninguém se arriscava a perguntar.
Entrou mais um na sala, olhou por um segundo a mulher e tratou de pegar um café.
Olhou para os outros.
Estavam todos ali. A mulher estava ali.
O chefe nada falava.
Pelo menos o tempo passava. Lento, mas passava em silêncio.
De repente um leve estalo na madeira do piso fez com que todos abrissem os olhos.
O chefe permaneceu imóvel no computador. Apenas teclava.
A mulher deslizou da cadeira até o balcão e encheu um grande copo com vinho do Porto.
Com os dedos mexeu na bebida e molhou a pele desnuda com ele.
Lentamente foi molhando as tatuagens que cobriam sua pele. Ela era toda tatuada. Os seios pareciam os olhos de um grande pássaro pronto a voar.
O silêncio era total.
O chefe virou-se na cadeira e fez um sinal pedindo outro charuto.
Deu umas baforadas e virou-se novamente para o computador, absorto no que fazia.
O assistente que tremia no outro lado tinha parado de tremer.
Notaram que parecia ter ficado pendurado no quadro atrás dele. Imóvel como um casaco velho. O cabelo comprido parecia estar grudado na parede.
Os olhos do quadro pareciam olhar pela sala.
Com os seios pingando vinho que havia passado pelo corpo, a mulher caminhou lentamente pela sala.
O chefe estava atento ao computador, parecia ignorar o movimento.
A fumaça de outro charuto deslizou pelo ar enquanto ela puxou um a um todos assistentes ao seu redor.
Ela agora estava nua e segurava a garrafa de vinho numa das mãos. A bebida pingava pelo piso de madeira que parecia ganhar outro brilho.
Abriu um pequeno armário vermelho e tirou dali um bastão negro que preenchia sua mão.  
Seu corpo estava coberto pelo vinho escuro que parecia escorrer por todo piso.
Fez com que todos tocassem seu corpo enquanto suspirava lentamente e girava pela sala.
Ela colocou a garrafa no meio das pernas e o vinho que jorrava agora sem parar parecia ter uma consistência gelatinosa. Foi se espalhando pelo corpo dela, cobriu o piso e subiu pelas paredes.
Todos tremiam muito, mas não podiam negar-se a tocar a mulher. Lambiam o vinho sobre seu corpo como se estivessem mergulhando numa piscina. 
Aos poucos parecia uma bola humana, a mulher no meio de todos que pareciam entrelaçados, cobertos pelo vinho que agora cobria toda sala. Menos o chefe que estava no computador e parecia alheio a tudo.
Ela tocou um por um na testa com o bastão que deslizava de vez em quando pelos lábios e passava em si mesma como um falo, se acariciando profundamente.
Quando todas as mãos a tocavam ao mesmo tempo, em todas as partes, ela apenas sorriu e afastou-os de uma vez só.
Espichou os braços para frente como quem afasta bolhas de sabão e a massa de vinho e corpos recolheu-se para as paredes, subindo aos quadros pendurados.
Ficou sozinha no meio da sala. Não havia qualquer sinal da bebida. Na sala estavam apenas ela e o chefe.
Completamente nua e a pele muito branca tinha uma aparência serena. Respirava quase normalmente e seus olhos eram brilhantes.
Tirou a garrafa que segurava no meio das pernas e lambeu lentamente uma única última gota de vinho que estava na borda.
Foi até o balcão vermelho, cuidadosamente tampou a garrafa com uma rolha que ali estava. Guardou o bastão e a garrafa no balcão de forma reverente e cuidadosa.
O silêncio era total na sala.
A fumaça se dissipou até que outro charuto foi aceso.
O chefe olhava as mensagens no computador e a mulher sentou quieta ao seu lado.
Ele não se importava se ela gostava de pintar quadros contanto que não o importunasse.
A sala agora estava vazia.
Apenas aqueles estranhos quadros com aquelas expressões nas faces.
Os olhos que se moviam.
Sempre havia rostos novos nos estranhos quadros.





Gilberto Strapazon
29/05/2012

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Relacionamento por Toque






Relacionamento por Toque
Gilberto Strapazon


Uma das coisas básicas no relacionamento entre homens e mulheres é o contato.
Um pequeno toque no braço, na mão ou no ombro é suficiente para indicar se a mulher está receptiva ou não.
Não se trata de apertar, muito menos ser intrusivo. A mulher tem umas dez vezes mais sensibilidade na pele do que o homem.  Apenas um sutil e leve toque e observação atenta vão indicar se ela aceitou ser tocada ou não. Se ela se retrair, relaxe e não force.
Algo tão simples e vejo que as pessoas não observam isto.
Com o tempo aprendi outras coisas. Principalmente não tocar uma mulher sem conhecê-la antes. Felizmente logo me dei conta disto rápido, quer dizer, depois de tomar na cara vários tapas de mulheres interessantíssimas que encontrava na rua.
Maldita timidez. Precisei sair mais vezes de casa. 
Acrescentei então maneiras de me apresentar. Sei lá porque elas pareciam achar que eu era vendedor daqueles cartões de loja que ficam abordando as pessoas no meio da rua. Analisando a situação e fazendo algumas estatísticas percebi que perguntar se elas queriam sair comigo não era um bom início de conversa.
Que coisa estranha são as pessoas! Não entendo porque tanta desconfiança se eu estou sendo tão franco e honesto! Mostrei ser confiante e esperançoso na humanidade conversando com elas sem nem saber o nome ou o que faziam. 
Bem, passei a perguntar o nome delas então, mas parece que algumas histéricas não gostaram que eu perguntasse o nome delas enquanto dava um leve toque no braço. Será que pensaram que eu ia tentar roubar sua bolsa?
E naquela vez precisava ter batido na minha cabeça com tanta força? Até hoje não sei o que aquela loirinha tinha na bolsa.
Fiquei sem jeito pela minha incapacidade de dizer ao médico que costurou minha cabeça que objeto haveria ali para ter feito este corte no meio da minha testa. Preciso continuar meus estudos sobre medicina básica, isto deve ajudar noutra oportunidade caso encontre alguma outra mulher assim desequilibrada.


Preciso me cuidar mais, essas mulheres são muito esquisitas. Tentei ser objetivo e eficiente e descobri algumas técnicas de marketing que parecem funcionar.
Fiz alguns cartões de visita bem bonitos e profissionais. Assim mostro para elas que estou realmente interessado e disposto a me expor.
Coloquei nome, telefone, comida preferida e dias da semana que estou disponível. E melhor de tudo, ao entregar o cartão posso tocar a ponta dos dedos delas e sentir se estão receptivas.
Foi quase um sucesso instantâneo. Só hoje entreguei uns quinhentos cartões. É interessante a capacidade de observação feminina. Elas têm essa intuição própria delas e uma capacidade cognitiva para observar tudo ao redor apenas num relance. Tive oportunidade de analisar um pouco esse processo quando elas pegavam o cartão passando como se nem me enxergassem no meio da multidão.
Realmente a astúcia feminina é intrigante. Acho que entendo porque Sansão foi seduzido.
Tenho certeza que fui cuidadoso ao escolher um ponto bem movimentado. Elas são tantas e tão bonitas. Nem precisei escolher. Como é bom morar num lugar assim. 
Notei que naquela área alguém teve ideias parecidas, pois havia outras pessoas distribuindo cartões. Uns até fizeram umas folhinhas coloridas. Por precaução e também para evitar levantar suspeita entre os concorrentes, não peguei nenhum daqueles papéis. Seria desleal da minha parte. Cada pessoa deve ter seus atributos próprios. Tudo bem aprender com os demais, mas usar a idéia dos outros não é correto.
Devo ter tocado nos dedos de pelo menos umas trinta. Mas preciso treinar mais às vezes é tão rápido que não dá tempo de fazer uma leitura corporal. Acho que devo prestar mais atenção à maneira como respiram e suas expressões, mas como passam rápido fica difícil. Deve ser por causa dos novos tempos. As mulheres estão mais ativas na sociedade e são cheias de compromissos, nem param.
Mas pelo menos não recebi mais nenhum tapa ou bolsada. Aquela cicatriz na minha testa deve ter ficado sexy. Muitas mulheres acham sexy senão algumas não se vestiriam com roupas góticas parecendo vampiras.
Quem sabe seja o cheiro? Elas têm um nariz que capta qualquer coisa.
Quem sabe é isto que está faltando? A distribuição de cartões está sendo um sucesso. Melhorei o texto, além dos meus dados coloquei mais algumas das minhas preferências alimentares, como gosto que a casa seja cuidada e quantos filhos pretendo ter.
Mas não entendo por que nenhuma delas ligou ainda. Depois reclamam que os homens não são sinceros.
Então passei a colocar um bom perfume e para garantir tenho agora vários frascos, assim o aroma se espalha. Não sou uma pessoa difícil de agradar e gosto de respeitar e valorizar as qualidades e gostos próprios que as pessoas têm. Por isso escolhi vários tipos de aromas diferentes, adocicados, amadeirados, florais.
Coloquei tudo em cima de uma mesinha discreta então posso entregar o cartão, às vezes sentir o toque na pele e os vidros de perfume faz o clima romântico.
Sei que isto vai ser um sucesso. Não haveria tantos livros sobre técnicas de relacionamento se não funcionasse. Às vezes a roupa delas roça no meu braço ou elas roçam em mim. Posso sentir a maciez do seu corpo naquele rápido e fugidio instante, mas o suficiente para lembrar que o toque é parte desta linguagem corporal da sedução. Assim como eu elas também devem estar curiosas e satisfazem seus instintos de fêmea fogosa discretamente raspando em mim no meio da multidão. Já estou prevenido e observo a espera do sinal verde. Por enquanto elas estão só me observando. Sinto-me um pudim no meio de um buffet na hora que abrem o restaurante.
Estou pensando também que demonstrar ser um cara voluntarioso pode ser interessante. As mulheres de boa família gostam de homens que se preocupam com os demais.
Às vezes chove, então coloquei uns guarda-chuvas na mesinha. Caso alguma dama precise de socorro numa chuva repentina estarei ali pronto para ajudar oferecendo minha mão estendida. Claro que me lembrei de colocar meu cartão preso dentro no guarda-chuva, assim ela vai poder ler ao chegar a casa.  Por precaução coloquei junto um pequeno relógio com despertador.
E realmente chove. E muito. Creio que o próprio Cupido trouxe essa inspiração. Preciso estar preparado para outra vez caso necessário. 50 guarda-chuvas não deram prá nada. Achei engraçado que algumas até se enganaram e ao invés de deixarem o cartão na minha mesinha, deixaram dinheiro. Correria, sempre a correria feminina. Abrem aquela bolsa e pegam a primeira coisa que aparece. Estão sempre atarefadas estas mulheres, prontas a se entregar quando encontrarem seu Homem, com “H”, a quem dedicarão uma vida de prazeres e companheirismo verdadeiro para ambos.
Sei que mais tarde, elas devem chegar a casa apressadas e como de costume, fecham o guarda-chuva sem enxergar o cartão. Mulheres adoram porta-joias, aquelas caixinhas com as bailarinas. Isto me deu uma ótima ideia. Fiz um pequeno dispositivo dentro do cabo do guarda chuva que detecta que o mesmo foi fechado e aguarda um tempo para que o mesmo seque e faça a entrega automática do cartão.
Claro que precisa esperar um pouco, pois se o guarda-chuva estiver molhado vai molhar o cartão!
E também, porque depois de pelo menos uma hora em casa, ela já terá trocado de roupa e estará relaxada e aquecida, muito provavelmente querendo uma companhia agradável e atenciosa. Momento ideal quando estará com toda certeza receptiva e interessada.
O mecanismo ficou ótimo. Ativado pelo despertador, o cabo se abre e toca uma música romântica de Mozart, enquanto libera um pouco dos perfumes e apresenta uma flor discreta junto o cartão. Mulheres adoram flores!
Acho que isto vai ser um sucesso. Agora coloquei flores também na mesinha, junto com os perfumes e os guarda-chuvas.
Todos estes livros e observações das pessoas estão me tornando mais sensível e espiritualizado. Decidi colocar também alguns incensos, assim as mulheres que gostarem de coisas místicas terão um ponto de interesse imediato.
Sinto que logo uma delas responderá ao toque dos meus dedos e o amor será instantâneo. Minha alma gêmea está próxima, eu sinto isto.
Acho que vou colocar um pequeno toldo por cima da mesinha, assim quando ELA chegar, não temerei a chuva e também poderei colocar alguns presentes pendurados, prontos para entregar quando chegar a hora. Elas adoram o cara que é um bom provedor.
Mulheres são indecisas e gostam de variedade. Coloquei umas bolsas, lenços de seda, colares, coisas pessoais.
Por via das dúvidas, caso alguma intelectual apareça tem alguns livros e um para dar o toque bem “cult”, um pinguim de geladeira.  É uma coisa que virou objeto de fascínio para muitos geekers.
De repente vejo aqueles dois olhos castanhos e profundos me olhando. Demorei alguns segundos para notar que ela estava bem a minha frente e segurava minha mão cheia de cartões.
Ela tem um toque europeu, clássico. Os delicados brincos combinam com o discreto batom. Com toda certeza uma mulher de classe.
Passam os segundos, recupero a respiração e deslizo discretamente a ponta de um dedo mal tocando seu ombro. Seu perfume é discreto e imagino cenas de seu banho.
Sinto que ela fica toda acesa ao meu toque, uma resposta perfeita. Então ela tira os cartões da minha mão e coloca-os na mesinha enquanto ela própria pega um cartão do bolso da sua camisa e mostra para mim.
Finalmente encontrei quem procurava. Ela tem um toque de cumplicidade e camaradagem. Olho o cartão sem querer desviar dos seus olhos já contemplando os lábios carnudos, imaginando seu beijo.
O cartão parece plastificado. Achei uma ideia interessante, nos dias de chuva teria economizado alguns guarda-chuvas. Tinha várias palavras, embaixo de uma maior que dizia “Fiscal”.
Ela bem que tentou me alertar enquanto passava os olhos e seus dedos compridos e macios sobre as coisas que coloquei ali esperando este dia.
Quando percebi apareceu um baita brutamonte e demorei uma fração de segundo para entender que ela deve ser casada e tentou me alertar logo quem seria.
Nos segundo seguinte o homem e mais dois que apareceram, prováveis rivais também, começaram a pegar os presentes de cima da mesa e jogar dentro de uma caixa enquanto ela apenas me olhava, num disfarçado sorriso distante e cúmplice de quem não poderia revelar sua verdade mais íntima naquele instante.
Interessante como estas mulheres de beleza exótica com frequência acabam ficando com uns caras tão trogloditas e sem classe.
Ela tentou me alertar para o tal fiscal em nosso rápido encontro que durou apenas alguns segundos antes destes algozes aparecerem.
Não entendo como alguém assim pode ser fiscal de alguma coisa.
Para quê estas algemas?
Apenas estou procurando conhecer uma mulher legal, de boa cabeça, sensível para um relacionamento romântico e sincero. E muitos, muitos filhos. Famílias enormes são uma das melhores coisas que um homem pode ter. Serei um bom pai e marido amoroso. Agora ela me encontrou e nos roubam o momento do primeiro beijo. Deve ser algo maravilhoso, tantas pessoas fazem isto. Guardei-me para ela.
Mas estes caras não sabem nada de Amor!
-Socorro, me larguem!


.’.


Gilberto Strapazon


28/05/2012

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Saudade Que Não Passa





Saudade Que Não Passa
Gilberto Strapazon


Olho pela janela do terceiro andar são dez horas da manhã e lá fora o céu azul e sem nuvens parece esconder algumas estrelas que não posso ver.

Fico algum tempo olhando enquanto meu corpo ainda dói pela noite mal dormida.

Penso nela o tempo todo, nunca me esqueci do seu cheiro no meu corpo.

Sinto saudades, mas meu cérebro insiste em tentar me lembrar de que ela não vai voltar.

Olho para baixo e as casas logo à frente parecem tão cheias de vida.

Até um cachorro correndo pelo gramado arrastando o que parece um lençol branco arrancado do varal me faz pensar nas coisas do universo, do tempo e espaço.

Será que estamos sós neste universo tão grande como alguns querem pensar?

Será que esse deus que falam por aí pensa que nem aquele idiota ganancioso do armazém da esquina que acha que é o único lugar para as pessoas comprarem alguma coisa?

Acho que esse tal deus deve pelo menos pensar como um cara de supermercado, daqueles grandes.

Isso me lembra dela de novo, andando por entre as prateleiras, escolhendo frutas frescas, um bom vinho. Os ingredientes para um jantar romântico.

Nunca me esqueço do jeito dela andar, feminino, macio, sensual sem ser vulgar.

Esse deus não deve gostar de pessoas vulgares, mas deve ser sensato porque tolera essas coisas.

A dona do cachorro apareceu e tirou o lençol sujo de barro da boca dele. Percebo num instante como isto tem a ver com os elos de comunicação quântica entre as dimensões.

É isto! Eureca!

Agora entendo! Essa é a chave que abre o portal entre dimensões, locais e universos diferentes!

Estava ali o tempo todo!

Qualquer criatura poderá compreender a outra desta maneira e deslocar-se instantaneamente para qualquer lugar do universo!

Então é assim que Eles (os extraterrestres) devem fazer! Ou não?

Será que essa descoberta é conhecida por outros povos evoluídos?

Creio que vou fazer minha primeira experiência indo até algum lugar distante para ver como vivem!

Meu coração mudou o compasso. Agora estou acordado.

Sinto uma nova vida em mim.

Preparo um café enquanto penso nos oito componentes do aparelho que faz esse portal funcionar. É tão simples.

O movimento do cão balançando a cabeça tentando segurar o lençol está vivo na minha memória. Então tive o lampejo e tudo se encaixou na minha mente.

Lembro que o cabelo dela balançava sedoso. O queixo suave e delicado.

Isto não passa. Meu peito começa a doer de novo, saudade dói.

Penso num jantar a dois. Olhares apaixonados. Conversar a noite toda deitados na grama olhando as estrelas.

Movimento estelar. Galáxias. Mundos sem fim.

Será que o portal vai funcionar para eu voltar e poder reencontra-la? Quem sabe consigo fugir desta saudade aguda que parece sem conserto e vou me comunicar com outros seres e quem sabe, outras mulheres? Será possível um amor cósmico?

Será que as mulheres de outros planetas serão tão femininas e maravilhosas como ela foi para minha vida?

Tinha esquecido e voltou como um golpe surdo. Minha cabeça estala como uma árvore rachada por um raio na tempestade.

-Por que isto dói tanto? Grito alto.

Quebrei outra xícara. Cortei a mão outra vez. Volto para a janela. O céu está azul e limpo. Meu corpo dói onde os cacos da xícara penetraram fundo.

O sangue suja minha roupa.

Cuido para não sujar as roupas dela mesmo sabendo que os pingos não podem alcança-la.

Não tenho como chegar perto.

Sinto tanta saudade do seu perfume.

Preciso comprar outras ferramentas.

Não posso tirar aquela chave de fenda da garganta dela.

Ela poderia gritar e eu ficaria preso também.

Talvez eu conseguisse me aproximar dela.

Bastaria pedir com jeito, ela não iria gritar.

Sinto falta da sua voz nestes anos.

Mas ela nunca mais falou comigo.

Sinto tanta saudade do jeito que ela caminhava.

Quem sabe o portal funcione e eu volte no passado.

Ao dia que a conheci.

Nunca descobri o que jantar delicioso ela ia preparar com aquelas coisas que estava comprando.

Ela era tão linda. O sol entrava pelas claraboias e fazia dela uma pintura dos mestres.

Tentei explicar que a chave de fenda era para controlar o mecanismo do portal que eu tinha feito para viajar no tempo.

Ela tinha aquele jeito de mulher inteligente. Seus olhos eram tão doces.

Acho que ela deve ter se assustado com algum barulho na rua e correu sem perceber para cima do portal, tropeçou e ficou pendurada com a chave de fenda no pescoço.

Não posso tirar ela dali senão o velho portal vai fechar novamente.

Continuo olhando para o portal que liga meu quarto ao corredor daquele supermercado. O dono deve ser como deus, pois não fica incomodando as pessoas com mesquinharias. E ninguém repara na passagem no meio do corredor de bebidas.

Pelo menos posso fazer compras sem ter que pegar chuva ou sol.

Pelo menos consigo passar de lado na estreita passagem sem ficar preso também.

Talvez eu compre uma bebida na próxima vez.

Se ela estivesse comigo seria maravilhoso. Eu me apaixonei quando a vi.

A bolsa dela continua no canto rodando no meio daquela luz espiralada. Tentei muitas formas para alcançar a bolsa, porém tudo é arrancado da minha mão.

Agora farei o novo portal e quem sabe chego lá antes que o antigo se abra e ela fique entalada de novo.

Aí ela vai voltar para mim. Vamos nos beijar apaixonadamente.

E vou saber seu nome.

Já faz tanto tempo.

Tanto tempo.

Meu peito dói de novo.

Preciso tentar dormir.

Depois vou construir o outro portal.

Todos outros falharam ou foram engolidos pelo primeiro.

Posso vê-la, mas não basta.

Sinto tanta saudade dela.


.'.


17/Maio/2012

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Partes da Arte




Partes da Arte
Gilberto Strapazon


Odeio quando ela deixa o olho cair no café.

Sempre espirra em cima da mesa.

Tudo bem que aquele emprego paga uma grana legal, mas deve ter outras opções para trabalhar como modelo.

Pego outro biscoito e volto para o estúdio.

Mais um filme trash para fazer a trilha sonora só depois de editado.

As horas passam enquanto as notas saem pelas caixas de som.

O diretor achou legal o tema que compus para a mocinha.

Foi um trabalho caprichado colocar as mensagens subliminares dentro da música. O público fica com medo sem perceber que a melodia está fazendo seu serviço.

Ela tem belos olhos e agora são gélidos e magnéticos com a música.

Chegam suas mãos deslizando em mim. Relaxa-me. Ela sempre vem aqui antes de ir para o trabalho.

Deixo o gravador ligado, continuo tocando enquanto ela me satisfaz sem se importar se estou olhando para as imagens na tela.

Às vezes os pontos cirúrgicos sobre alguma parte da pele dela me arranham. É sempre assim.

Aproveito para gravar os gemidos sufocados dela para colocar noutra mensagem subliminar. Fica ótimo nas partes em que o mocinho aparece espancando outro daqueles monstrinhos verdes.

A boca dela é perita nisto. Mas às vezes o olho cai com o movimento ou o joelho sai do lugar de novo. Já acostumei com as juntas que estralam.  Preciso comprar um tapete novo, este já está gasto onde ela se ajoelha.

Acabo perdendo algumas notas quando meu corpo liberta seu prazer. Ela coloca o olho de volta enquanto passa as mãos no rosto. Ela sempre faz aquela cara de quem comeu um sorvete no melhor dia do verão.

Ela ajeita o corpo cheio de marcas irregulares, me beija na face e sai para o trabalho.

Ela não se importa de trabalhar como modelo vivo.

É uma boa grana e o Dr. Frankenstein sempre foi muito generoso.


.'.

10/05/2012



segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Pesadelo



O Pesadelo
Nei Moreira


Acordei assustado com o vento frio que atravessava o quarto. Levantei para ir ao
banheiro quando vejo a janela do apartamento aberta.  Fui em sua direção para
fechá-la e pisei em algo gelado e viscoso. Observei que
cobria boa parte da sala e o sofá estava afastado da janela. Olhei em volta e
não reconhecia o lugar, os quadros, o sofá e os tapetas não pertenciam ao
meu apartamento. Curioso olho atrás do sofá e encontro alguém caído...  O que pisei era
sangue. Nisso um barulho no corredor chama a atenção. Alguém bate na porta e percebo
forçá-la para entrar. Escuto alguém dizer:
- Tenho a chave, não precisa arrombar.
Com a adrenalina tomando conta, os policiais entram no apartamento e me cercam. Não consigo falar nada, não consigo raciocinar. Não me lembro de nada da noite anterior, pois não me lembro de entrar naquele apartamento. O suor toma conta do rosto e começo a tremer de nervoso. Um policial me algema e me leva para fora do apartamento. Quando atravesso a porta o relógio desperta anunciando a hora de acordar. Ainda bem... Foi só um pesadelo.