domingo, 23 de outubro de 2011

O Último Dia



O Último Dia
Márcio Chacon


             Ainda está escuro. Estaciono o carro e cumprimento o nosso flanelinha Gilberto. Entro na delegacia e já sinto o cheiro do café de Melissa. Acendo todas as luzes e ligo todos os computadores. Já devia estar tudo ligado com a troca do plantão, mas parece que fui o primeiro a chegar (depois de Melissa). Escuto alguém passando pelo corredor acelerado. O salto alto ajuda na identificação... Sei que é ela me trazendo um copo de café:

- Bom dia, sargento.

- Bom dia, Melissa.

- Preparado para seu último dia?

- Por que não estaria? É um dia normal... Como foram todos os outros.

- Alguns achavam que nem ia aparecer por aqui hoje.

Rio junto com ela. Melissa é a única secretária em nosso setor e sabe lidar muito bem com o pessoal... Até mesmo com os chatos. Ainda por cima é linda. Uma ruiva de olhos brilhantes e corpo desenhado magnificamente por Deus. Ela sempre foi e sempre será objeto de desejo do pessoal e sabe muito bem disso. O que é realmente incrível é saber que, toda vez que consegue fazer uma pausa no serviço, ela aparece para conversar comigo. No início achei que estava fazendo a figura do pai ausente, mas bastaram algumas semanas para perceber que estava enganado... Sei que ela gosta de mim. Tenho o dobro de sua idade e estou me aposentando para buscar um lugar onde possa enterrar os fantasmas do passado. Já havia desistido da vida a muito tempo até ela aparecer. Melissa me fez sentir vivo de novo e não lembro o número de vezes que tive a chance de tê-la em meus braços e então fazer amor da maneira como os mais belos e perfeitos dos anjos merecem. O grande problema é o fato de ser um homem casado, mais velho e com traumas que não conseguem desaparecer.

Termino o café e ela ainda está com o copo pela metade. Como se quisesse dizer algo e então cria coragem:

- Trouxe comida de casa?

- Saí tão depressa de casa que acabei não trazendo nada.

- Quer almoçar comigo?

Aquela pergunta direta faz com que pare de olhar para ela. Ela insiste com o convite:

- Por que não? É seu último dia. Assim vai poder deixar o pessoal com ciúmes saindo com a secretária preferida. Então... Combinado?

Sorrio e aceito. Ela se levanta rapidamente, vai até a porta e pergunta:

- Eu sou a sua preferida também?

Fico sem graça diante da pergunta provocativa e ao mesmo tempo doce:

- É um anjo.

Melissa sorri e sai rapidamente para atender ao telefone. O convite dela mexeu de alguma forma comigo. Aos poucos o pessoal vai chegando... Miguel e Álvaro passam por mim rindo. Logo em seguida chega Oliveira:

- Bom dia, sargento Vargas.

- Bom dia.

Preparado para alguns depoimentos e algumas pastas para arquivar.

            -Seu humor é algo notório, Oliveira.

- Vargas... Lidamos diariamente com a merda dos outros. Temos que ter bom humor. Ou é isso ou é uma bala na cabeça.

Deixo a piada dele de lado e volto minhas atenções para uma pilha de anotações e depoimentos. Oliveira ajeita suas coisas na mesa ao lado e continua a conversa:

- Sabe o doido que andava atacando pelo bairro?

- Sim... Eu leio jornais. O que houve? Pegaram ele?

- Pegaram hoje durante a madrugada. Ele matou oito pessoas em menos de três semanas não é?

- Parece que são nove. Há ligações com um outro caso não resolvido mês passado. Em todos os casos a vítima foi encontrada enterrada e com a garganta cortada.

Oliveira observa a minha pilha de depoimentos para arquivar e susurra:

- Ele vem pra cá.

- O quê?

- Parece que ele vem pra cá. Houve um princípio de tumulto na central. Os presos não querem dividir cela com ele. Acham que o cara realmente é um monstro.

- Que loucura.

- Vai cumprir seu horário normalmente hoje? É seu último dia... Poderia conversar com o delegado, se despedir do pessoal e ir embora logo após o almoço. E deixar o resto da merda com a gente.

- Melissa me contou que muita gente estava achando que eu nem ia aparecer hoje.

- Podemos sair mais cedo com ela e beber um pouco para comemorar... O que acha?

- Eu não posso. Prometi a Vera que voltaria pra casa. Estamos terminando de empacotar tudo.

Oliveira muda sua expressão alegre para séria. Então pergunta:

- Como ela está?

- Melhor. Demorou um pouco mais pra ela... Para assimilar o que aconteceu.

- Mas ela está realmente melhor?

- Sim.

Miguel aparece e corta a conversa:

- Então homem velho... Que horas pretende fazer a triste despedida?

- Eu agradeço a preocupação de todos vocês, mas vou cumprir meu horário.

- Então deixe esses arquivos e coisas importantes de lado. O delegado quer vê-lo.

- Agora?

- Claro... Esse monte de papel na sua mesa pode esperar um pouco, não pode?

Deixo Miguel sem resposta e dirijo-me a sala do delegado. O nosso famoso delegado Bueno chegou a seis anos... Eu já trabalhava aqui. Veio substituir o nosso antigo delegado e grande amigo Mathias. Não posso dizer o mesmo de Bueno. Tenho certeza que essa conversa com ele não será agradável. Sei que ele não gosta de mim e eu também não gosto dele.

Antes de entrar, respiro fundo e então bato na porta. Escuto sua voz autorizando minha entrada. Entro e o cumprimento:

- Bom dia, senhor.

- Bom dia, Vargas. Sente-se.

Sento de frente para ele que termina de ajeitar sua gravata.

- Então é o seu último dia hoje, certo?

- Sim senhor.

- Incrível... Realmente incrível. Estava dando uma olhada em sua ficha. Praticamente viveu dentro da polícia.

- Sim senhor. É verdade.

- Trabalha nessa delegacia a uma década. No mesmo serviço, na mesma mesa e com o mesmo ramal de telefone.

Permaneço em silêncio enquanto ele continua lendo detalhadamente minha ficha.

- Sabe que não terá todos os benefícios saindo agora?

- Sim senhor... Sei sim.

- Vou confessar uma coisa. Não preciso perguntar o motivo de estar saindo agora. Bastou eu ler esse recorte de jornal solto em sua ficha para descobrir. Faz pouco tempo que perdeu sua filha, não é?

- Três meses, senhor.

- Deve ter sido dífícil.

- Foi sim.

Pelo jornal temos poucos detalhes. Ela voltava da praia com duas amigas quando outro carro invadiu a pista e bateu em seu carro. Apenas a amiga que estava no banco de trás sobreviveu, correto?

- Sim senhor.

- Sua filha chegou a ser socorrida?

- Sim... Ela morreu três horas depois de chegar ao hospital.

- O motorista fugiu?

- Sim senhor. O veículo que ele estava usando era roubado.

Não queria falar mais sobre o acidente. Se tivesse encontrado o motorista... Ele já estaria morto e eu talvez estivesse preso em uma cela com outros seis bandidos. Bueno guarda minha ficha em uma pasta e atira sobre a mesa. Precisaria dizer algo humano naquele momento, mas é uma tarefa complicada para pessoas como ele.

- Como está sua esposa?

- Está melhor, senhor.

- Algumas vezes os desígnios de Deus nos trazem dor.

- Sim senhor. É verdade.

- Detesto esse tipo de conversa... Detesto perder um bom policial... Mesmo sabendo que ele quase nunca saiu para as ruas ou trocou tiro com bandido.

- Senhor... Eu me orgulho em ter sido um bom policial para esse bairro.

Bueno me encara, pega o telefone e disca para alguém:

- Só passem ligação para a minha sala quando o estagiário chegar!

- Vargas... Eu respeito policiais velhos, mas não tenho paciência com molecada que dorme até tarde.

Bueno pode ser mais novo, mas é esperto e sabe a importância da figura dele para o funcionamento das coisas em nossa delegacia. Já foi premiado três vezes pelo próprio prefeito e isso não é para qualquer um... Principalmente para filhos da puta como ele.

- Eu não quero ocupar seu tempo, senhor. Eu já estou com quase tudo pronto.

- Você é o menor dos meus problemas hoje, Vargas. Lá fora existem todos os tipos de bandidos e assassinos circulando livremente e justamente hoje a central vai me trazer o pior deles.

- Eu fiquei sabendo, senhor. Oliveira me contou sobre a prisão.

- Ainda não sabemos de nada, mas depois de alguns exames eu vou saber até com quem o maldito estudou na infância.

Alguém bate na porta e Bueno manda esperar. Retoma a conversa de forma harmônica:

- Quero te pedir um favor. Nunca gostamos um do outro... Não conversamos nos churrascos e não bebemos junto. Mas quero te pedir um último favor como seu chefe.

- Sim senhor.

- Não fode comigo hoje. Você vai receber o cara e vai fazer ele assinar uma confissão por todos os crimes divulgados pela imprensa. Não importa o nome que ele vai dar e a garantia que ele vai pedir... Ele vai assinar e essa merda termina hoje. Entendeu?

Não digo nada. Penso em devolver o elogio, mas mantenho a calma. É ele quem continua:

- Preciso que faça isso, Vargas. Apenas isso... Mais nada. Pode sair agora.

Abro a porta e encontro o estagiário assustado como se estivesse escutado toda a conversa. Volto a minha mesa e retomo o serviço. Oliveira aparece curioso:

- Como foi a conversa?

- Amigável.

- Vão trazer o cara no início da tarde. Se eu fosse você dava uma volta, botava a cabeça no lugar, almoçava e então voltava para encarar o preso.

- Talvez almoce com Melissa. Não pretendo sair agora.

- Vai sair com Melissa?

- Ela me convidou para almoçar.

- Vargas... Tudo começa com um almoço, sabia?

- Eu sou um homem casado, Oliveira.

- Eu sei disso. Estava apenas brincando.

- Deu para perceber.

- Olha...Você terá que entregar sua arma. Um rapaz da central vem buscá-la. Talvez venha agora de manhã ou talvez venha de tarde.

- Eu mesmo tenho que entregar?

- Sim... Precisa da sua assinatura no formulário. Quem dita o ritmo das coisas em nosso país é a burocracia.

Oliveira volta para sua mesa. Olho para a minha e não sei nem por onde começar. Melissa passa por nosso setor sorridente como sempre. Miguel vai atrás dela feito um verdadeiro idiota. Começo a pensar em Vera. Penso no quanto ela ficaria feliz em me ver chegando agora em casa. Mas também penso em Melissa. O que poderia dizer pra ela durante o almoço? O que fazer? Talvez aceitasse a idéia de Oliveira. Sairia daqui mais cedo. Bueno não precisa de mim para fazer um homem assinar sua confissão. Deixaria um recado para Melissa ou até ligaria para ela avisando que surgiu algum imprevisto. Mas que imprevisto? O que realmente dizer? Meus pensamentos são interrompidos com o telefone.

- Alô.

- Vargas... É o Álvaro. Sei que está ocupado, mas pode atender uma senhora pra mim? Tentaram assaltar ela, mas não chegaram a levar nada. Ela insiste em prestar uma queixa.

Percebo Melissa voltando ainda seguida por Miguel.

- Passe o rolo para Miguel. Ele está passeando pelo prédio ao invés de trabalhar.

- Sério?

- Sim. E diga que eu sugeri o nome dele.

- Ele vai adorar. Deixa comigo.

Desligo com um sorriso no rosto e retomo novamente o serviço. Decido parar de pensar um pouco em Vera e Melissa para me concentrar no trabalho... Mas não consigo. A manhã vai se arrastando e junto com ela os meus pensamentos. Não consigo trabalhar normalmente. O barulho ao meu redor já começa a atrapalhar... Coisa que a anos não acontecia. Passam-se duas horas e continuo com a mesa lotada de coisa. Dá a impressão de ter trabalhado apenas uns vinte minutos. Queria estar ajudando Vera na mudança e ao mesmo tempo a ansiedade aumenta em ver Melissa na hora do almoço. O convite dela realmente despertou algo dentro de mim. Largo momentaneamente aquela papelada por toda a mesa. Levanto e vou atrás de café. Passo pelo corredor e tento ver Melissa. Sua mesa está vazia... Sigo em direção à sala do café. Álvaro e Miguel estão lá. Evito a conversa... Principalmente com Miguel que deve estar louco para me dar o troco. Encho meu copo de café e volto para minha mesa. O barulho aumenta, mas agora é diferente. Vem da rua... Forte e turbulento. Vou até a janela e conto cinco viaturas nossas. Oliveira surge apenas para confirmar o que já presumia:

- O nosso preso chegou.

- Trouxeram cedo.

- Acho que quiseram despistar a imprensa e conseguiram despistar até a gente.

- Acha que vão pedir para começar agora?

- Provavelmente sim.

Já cogitava a possibilidade de ir embora, mas queria ver Melissa... Precisava falar com ela. Bueno sai de sua sala acelerado e reclama algo com o estagiário. Vou até o corredor e tento achar uma visão privilegiada de tudo. Vejo doze homens armados e o preso. Bueno conversa com um policial e continua nervoso. Tento observar ao máximo o nosso suspeito. Tudo é válido e também facilita o trabalho de um policial. Não consigo ver muito, mas é notório que é um homem alto... Um homem branco que deve ter no máximo 35 anos de idade, cabelos castanhos e olhos bem negros. Sem tatuagens visíveis, brincos, olheiras ou alguma marca que pudesse rotulá-lo como algum doente perturbado ou ainda drogado. Aparentemente dá a impressão de ser o mais calmo de todos os homens presentes na recepção. Bueno volta para a sua sala me encarando. Escuto ele fazer uma ligação curta. Sai já com a ordem pronta e que já estava pronto a receber:

- Deixa tudo preparado na sala. Quero terminar isso antes do almoço e despachar ele para longe daqui.

Bueno também manda Oliveira me ajudar. Temos em nossa delegacia apenas duas salas destinadas a situações como essa. Situações envolvendo depoimentos, interrogatórios e confissões dos piores tipos de crimes já praticados pelo ser humano. Dependendo da pessoa o processo é rápido... Ainda mais com Oliveira ajudando. Talvez pudesse deixar tudo com ele e sair mais cedo. Organizo a mesa enquanto Oliveira checa a imagem da câmera instalada no teto. Alguém bate na porta, Oliveira abre e então Bueno e um oficial entram. É o nosso delegado quem faz a apresentação:

- Comandante Freitas... Estes são os homens que vão cuidar do suspeito. Felipe Oliveira e o meu perito nesse tipo de assunto... O sargento Vargas.

Sinto o deboche por parte de Bueno, mas ele é menor do que de costume. Percebe-se que continua tenso e a maneira e o ritmo como que ele está conduzindo tudo isso pode ser prejudicial.

Terminada toda a formalidade de apresentações pergunto quando o depoimento do suspeito teria início. Freitas responde que imediatamente. Oliveira então pergunta:

- Como aconteceu a prisão? Onde o encontraram?

- Não houve um processo de busca e prisão.

- Como assim?

- O suspeito foi até uma delegacia afirmando ser o responsável pelos crimes. Foi encaminhado para a nossa central onde houve um princípio de tumulto entre os presos. Trouxemos ele pra cá e os senhores farão o registro de tudo.

Bueno entrega a ficha do preso para Oliveira e acompanha o comandante até a porta. Ficamos então sozinhos na sala... Aos poucos começamos a ouvir o barulho dos degraus da escada. Presumimos que começará logo... Conforme deseja o nosso delegado. Oliveira me passa a ficha como se pedisse para começar e ser o responsável pelo andamento das coisas... Algo que eu não queria naquele dia.

A porta é aberta novamente... O preso entra seguido por dois policias. Eles o amarram completamente na cadeira... A única coisa que consegue movimentar é o seu pescoço. Ainda permanece ou aparenta um aspecto de tranqüilidade. Os olhos estão mais negros que antes. A calma insana e o seu silêncio começam a fazer efeito sobre Oliveira. Sento de frente para ele enquanto Oliveira permanece de pé. Quando os policias saem eu começo o que definiria como apresentação:

- Bom dia. Sou o sargento Vargas e este é o investigador Oliveira. Sabe o motivo de estar aqui?

- Sim.

Abro sua ficha e percebo que ele observa a sala atentamente... Cada mínimo detalhe.

- Vou tornar as coisas rápidas para você, por isso pediria que respondesse apenas o que pergunto.

- Por que não há janelas aqui?

- Estamos em uma sala de interrogatório. Não há necessidade em apreciarmos a vista. Eu peço novamente que responda apenas o que perguntar. Posso continuar?

- Sim.

- De acordo com a ficha que recebi... Seu nome é Júlio César Lima. Natural de Porto Alegre e completou 34 anos mês passado. Você pode me confirmar tudo isso?

- Sim.

- Sabe o motivo de estar aqui?

- Posso pedir um favor, sargento?

Oliveira responde:

- Apenas diga sim ou não para cada pergunta.

Ambos se encaram naquele momento. O fato de aquele homem estar completamente imobilizado não o torna menos aterrorizador.

- Não há necessidade disso. Queria apenas pedir um favor. Estou preso... Não posso fazer nada.

- Já chega! Se não ajudar será posto em uma cela com outros presos tão ruins como você e talvez tenha que dividir a ração com eles.

Percebo que Oliveira está nervoso e retomo com o interrogatório:

- Seu nome é Júlio César Lima. Natural de Porto Alegre e completou 34 anos no dia 13 do mês passado. Você pode me confirmar tudo isso?

- Sim.

- Sabe realmente o motivo de estar aqui?

- Sim.

- Você está sendo acusado pelo assassinato de oito pessoas e o desaparecimento e provável assassinato de um jovem mês passado. A perícia ainda não conseguiu encontrar provas que ajudem na identificação do criminoso. Pode me dizer se é o responsável pela morte dessas pessoas.

- Não matei o garoto.

- Pode repetir?

- Não matei o garoto que sumiu.

- Você confirma que é o responsável pela morte dessas oito pessoas?

- Posso lhe pedir um favor, sargento Vargas?

Que tipo de favor?

- Gostaria que soltasse um pouco a corrente no meu pulso. Os policiais quase o quebraram quando me prenderam aqui.

Oliveira ataca:

- Sem chances! Apenas responda a pergunta!

- Policial... Estou totalmente imobilizado. Mesmo que seja realmente um doido ou mentalmente perturbado... Não posso fazer nada. Só estou pedindo para examinarem meu pulso porque está doendo e não consigo pensar direito.

Peço para Oliveira sair e providenciar alguém que examine o pulso do preso. Não precisaria fazer isso. Bueno deve ter providenciado, pois acompanha tudo pelo monitor, mas a irritação de Oliveira pode atrapalhar o andamento das coisas.

Aguardo sentado de frente para aquele homem. Passam-se quase dez minutos e nada de Oliveira voltar... Muito menos alguém aparecer para examinar o suspeito. Olho para o relógio já preocupado e desejando que aquilo termine logo. É a vez do interrogado me perguntar:

- Algum compromisso para o almoço?

- O quê?

- Perguntei se tem algum compromisso mais tarde?

- Talvez.

- É o seu último dia como policial, não?

- Como sabe disso?

- Durante o trajeto ouvi alguns policiais comentando. Dizem que você é o melhor... Apesar de estar velho. E hoje é o seu último dia por aqui.

- Sim é o meu último dia.

- Fico feliz em saber que serei o seu último interrogado.

Aquela voz e aquele tipo de conversa já começava a me afetar também. Levanto-me impaciente e vou até a porta. Finalmente alguém aparece para examiná-lo. Miguel também entra e pede que vá conversar com Bueno. Caminho pelo corredor tomado de policiais e vou até a sala de Bueno. Ele não tira os olhos do monitor e não fala nada.

- O senhor queria falar comigo?

- Mandei Oliveira embora. Ele estava me deixando nervoso.

Concordo com a idéia dele. Nervosismo apenas atrasa as coisas.

- Encontramos uma testemunha e isso vai ajudar bastante. Você vai voltar lá depois improvisarem algo no braço do desgraçado. E vai fazer ele assinar a confissão. E toda essa merda termina hoje.

- Deixo nosso delegado e volto a sala de interrogatórios. O tempo passa e o exame continua... Parece que realmente quebraram o pulso dele. Não encontro uma explicação para terem feito isso... O homem nunca reagiu a nada desde que chegou aqui. Confiro o relógio novamente e já está na hora do almoço. A ansiedade em ver Melissa me destrói por dentro. Desço as escadas apressado e vou até a recepção atrás dela. O estagiário me informa que ela foi almoçar sozinha para não me atrapalhar no trabalho. Guardo o sentimento de frustração e volto para a sala onde está o preso. O estagiário me alcança e diz que um policial veio buscar minha arma.

- Agora não posso. Mande-o esperar.

O tempo não importa mais agora. Subo as escadas e chego até a sala onde um médico imobiliza o pulso do preso. Sento de frente para os dois. Agora não há motivo para pressa ou olhar tanto para o relógio. Queria estar com Vera, mas queria ter visto Melissa pela última vez. Queria acreditar que Daniela não tivesse sofrido tanto antes de morrer. Escuto algo do preso, mas não consigo me concentrar no que ele diz. Ele repete:

- Sinto muito.

- O quê?

- Eu sinto muito.

- Por quê?

- Por ter estragado seu almoço.

Aquele homem ali parecia adivinhar o que passava por minha cabeça. Como se minha mente sussurrasse em seu ouvido todos os meus demônios interiores. Aquele preso não devia estar aqui. Eu também não devia. Queria estar com Vera, queria Melissa e queria minha filha de volta.

O médico sai e ficamos sós... Apenas ele e eu. Tranco a porta, abro a minha pasta, pego uma folha e sento ao seu lado.

- Pode assinar sua confissão, por favor?

Não há reação naquele homem. Nenhuma queixa ou negação. Ele simplesmente pega a caneta e assina para talvez o alívio de Bueno vendo tudo no monitor.

Agradeço e guardo aquele papel que provavelmente o mantenha preso até a morte.

- Eu assinei pelas mortes noticiadas, correto?

- Sim... Não será julgado pelo desaparecimento que mencionei antes.

- Acharam o motorista que bateu em sua filha?

Existem coisas que não desejamos ouvir. Coisas que não nos fazem pensar... Apenas agir.

- O que disse?

- O motorista. Ele foi preso depois que sua filha morreu? Só se fala em você por aqui. Dizem que você está saindo por causa disso... É verdade?

- Por que me pergunta isso?

Porque o estagiário lhe pediu para entregar sua arma antes de entrar aqui, mas você não o fez. Por que voltou armado e trancou a porta?

- Do que diabos está falando?

- Poderia ter entregado a arma. Jamais saberia se eu fosse realmente o responsável pelo acidente. Aí que surge minha dúvida. Por que entrou armado?

Alguém bate na porta. Escuto Bueno me ordenando que abra. Já não consigo pensar direito. Não há mais lógica nas coisas.

- Você matou minha filha?

- O que quer que eu diga? Foi um acidente de trânsito.

Aquele tom de voz, aquela calma e frieza me contaminam. Aquele homem não devia estar ali. Atiro uma cadeira contra a parede, saco minha arma e pergunto:

            - Você matou minha filha?

- Não. Não estava na cidade, Vargas.

Percebi na hora que aquele homem falava a verdade. Ajoelho-me e lágrimas correm pelo meu rosto. Uma sensação de vergonha e ao mesmo tempo de frustração crescem dentro do meu peito. Bem que poderia ser aquele homem diante de mim o responsável por ter me tirado uma filha e por ter me deixado uma esposa doente. Bueno esmurra a porta violentamente aos berros. Estou sem forças para me levantar e sem coragem de encarar um homem algemado que continua com seu diálogo:

- Não matei sua filha. Talvez nunca peguem o responsável. Mas se você quiser... Assumo isso por você. Assumo ser o responsável pelo acidente, por você não estar em casa agora e por ter perdido o almoço com alguma colega de serviço.

Agora já encaro aquele homem. Levanto do chão ainda com a arma.

- Vargas... Foi esse o motivo da pressa? Ia sair com alguém daqui? Na verdade vi poucas mulheres nessa delegacia. A única que me chamou a atenção foi uma ruiva na recepção. É linda como um anjo e eu até seria capaz de trair minha esposa com ela... Se fosse um homem casado, claro.

- Tem idéia do que acabou de me dizer?

- Quero apenas pedir desculpas por tudo. Antes que você use a arma e antes que arrebentem a porta.

Não havia mais nada lógico nas coisas, não conseguia mais raciocinar. Estava em um inferno. O inferno não é alguém ardendo em fogo eterno e sim a impossibilidade de raciocínio. Não há Bueno e nem leis naquela sala. Apenas ele e eu. O armado e o desarmado. O bom e o mau. Que então deixem o homem ser o carrasco do próprio homem. Aponto minha arma para ele, enxugo minhas lágrimas e sorrio:

- Talvez você esteja certo.

- Dou quatro tiros naquele homem algemado, a porta é arrombada e sinto algo forte me acertando na cabeça. Alguns segundos de dor, tontura e em seguida o sono. E ali terminou meu último dia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário