Monstro
Márcio Chacon
Monstro: Tudo o que é contra a ordem regular da natureza; Coisa gigantesca e colossal; Pessoa cruel, feroz, desumana e perversa. (dicionário Michaelis da língua portuguesa)
Já
é tarde. A chuva forte me castiga na parada enquanto o ônibus não vem,
mas chegar molhado em casa é a última das minhas preocupações. Terei que
contar a Lúcia que fui demitido. Parece que depois da gravidez nossa
vida despencou. Menti dizendo que estava feliz com a gravidez dela, mas
foi uma péssima hora para termos um filho.
O
ônibus finalmente chega. Passo a roleta e sento bem no fundo. Conto
cinco a seis pessoas no máximo. Todos de olhares cabisbaixos e cansados.
Mesmo sentando no fundo ainda escuto o barulho do radinho de pilha do
cobrador. Ele se esforça para sintonizar um jogo de futebol, mas não
consigo descobrir quem estaria jogando numa hora dessas. Também não
consigo me lembrar que dia da semana é hoje... Saí totalmente perturbado
da fábrica. Sei que o pai de Lúcia vai adorar saber da notícia. Aquele
velho fervia por dentro durante o casamento e tinha certeza que Lúcia
pediria ajuda a ele logo quando os primeiros problemas começassem a
surgir.
A
chuva não diminui e o ônibus se arrasta diante de um trânsito caótico. O
caminho será demorado até deixarmos o centro. Quando pegarmos a avenida
Brasil estaremos livres do trânsito e do caos. Encosto a cabeça no
vidro e tento dormir um pouco... Ao menos enquanto estivermos presos
aqui. Fecho os olhos pensando no que dizer a Lúcia. Aos poucos o sono
começa a aparecer até o rádio do cobrador despertar a todos com uma
chamada policial. Ele chega a comentar algo com o passageiro sentado
perto dele, mas não consigo entender do que se trata. Passam-se vinte
minutos e finalmente deixamos o centro. Antes de pegarmos a avenida três
viaturas policiais nos ultrapassam... Presumo que sejam as que
responderam ao chamado noticiado no rádio. Hugo esperou o pior dia do
ano para me demitir. Fiquei oito anos na fábrica e modernizei toda a
linha de montagem, mas isso pouco importa para ele. Hugo preferiu dar o
emprego ao seu primo que de longe se percebe que não passa de um total
incapacitado.
Enfim
o caminho parece estar mais limpo... O motorista acelera. Não temos
mais tráfego e tumulto... Apenas algumas pouquíssimas sinaleiras e
estarei logo em casa. Abro a carteira para conferir o dinheiro pela
segunda vez desde que deixei o serviço, mas desta vez sou interrompido
por uma freada brusca do motorista. Bato com a cabeça no vidro e solto
minha carteira e algumas moedas no chão do ônibus. Escuto um passageiro
gritar, ponho a mão na testa para saber se estou sangrando e tento me
levantar... Não consigo. A pancada me deixa totalmente tonto e a dor é
terrível. Junto a minha carteira com dificuldade... Olho pela janela e
não consigo ver nada... Apenas a chuva. O motorista e alguns passageiros
saem rapidamente do ônibus. O cobrador e outro passageiro me ajudam a
levantar e sair. Ele olha pra mim e resmunga:
- Acho que batemos em um cachorro dos grandes.
Nos
juntamos ao motorista e aos demais passageiros para ver o corpo de um
animal morto na estrada... Mal sabíamos que o que veríamos ficaria
guardado em nossas mentes pelo resto de nossas vidas. O cobrador se
enganou ao dizer que se tratava de um cachorro... Aquele animal era
grande demais para um cachorro. Talvez pudesse ser uma espécie de lobo,
mas muito maior e mais forte do que já tivesse visto na televisão. E não
estava morto... Estava vivo, respirando com muita dificuldade e mesmo
assim se tornando barulhento e assustador. Tinha a pele escura e a
cabeça pintada em vermelho por causa de um corte fundo. Aquela coisa
estava ferida gravemente e não tinha forças para se levantar... O único
motivo para estarmos vivos era esse... Aquele animal nos encarava como
se fossemos realmente uma ameaça.
Alguns
policiais chegam junto com uma ambulância. Um deles pede para nos
afastar e deixar espaço para a ambulância passar. Na verdade não era uma
ambulância comum. Dois militares mascarados saem de dentro dela com uma
espécie de rede. Todos percebemos na hora que aqueles homens não vieram
salvar ninguém e sim capturar aquele animal ferido.
Em
pouco tempo aquele monstro já está cercado por policiais e militares.
Alguns curiosos também aparecem e se juntam ao nosso grupo. Eu estou
totalmente paralisado. Não consigo definir o que sinto exatamente. Ao
mesmo tempo em que tenho medo e deseje fugir... Tenho vontade de ver
como aquilo tudo termina. Preciso saber o que irão fazer com aquele
animal. Todos nós estávamos ali esperando o desfecho para aquela cena
absurda que parecia não ser real.
Foi
então que a chuva diminuiu e junto com ela o barulho da respiração
daquele monstro. Ele ainda está vivo e respirando, mas agora era de
forma silenciosa... Como se estivesse planejando alguma coisa e juntando
forças. Um militar mascarado se aproxima e injeta uma espécie de
tranqüilizante em seu peito. A idéia parecia ser simples: Esperar ele
adormecer para depois prendê-lo e levá-lo de volta para algum maldito
laboratório tão secreto que a sociedade jamais descobrirá onde fica. Não
sei o que havia naquele tranqüilizante, mas acredito que não tenha sido
o suficiente. Aquele lobo não dorme. Ninguém se move dali e os curiosos
aumentam... Já havia umas trinta pessoas no local. Alguns militares
chegam com a enorme rede enquanto outro traz mais uma dose de
tranqüilizante, mas desta vez aquele animal não deixa que o adormeçam.
Bastam dois a três segundos para aquele monstro atacar o militar
mascarado. Ele salta sobre aquele homem e precisa apenas de uma mordida
para arrancar seu braço fora. Alguns policiais começam a atirar enquanto
os militares soltam a rede e correm. A pele daquele lobo parece ser
indestrutível... As balas lhe fazem cócegas. Outros dois militares são
atacados pelo monstro... Foi então que ele corre e sobe em uma viatura
policial. Nosso grupo ainda está bem numeroso até o momento que aquela
fera nos vê... Mesmo de longe. Não espero ela descer de cima daquele
carro... Começo a correr. Todos fazem o mesmo. Não escuto mais a chuva:
Apenas gritos, tiros e a respiração daquele monstro rosnando. Estou a
duas quadras da minha rua e corro o mais rápido que posso. O barulho
daquele animal está cada vez mais perto e foi então que ouço um dos
passageiros cair e gritar... Não paro para ver se ele está sendo
atacado. Resolvo entrar no pátio de uma creche e atalhar o caminho.
Talvez me separando do grupo esteja a salvo. Atravesso todo o pátio da
creche, pulo um muro alto e já estou na outra quadra. Descendo mais um
pouco estaria na minha rua e é exatamente o que faço. Atravesso uma
antiga cancha de basquete, driblo algumas árvores e arbustos e
finalmente chego ao portão de acesso para minha rua. Estou exausto...
Sento atrás de uma árvore próxima ao portão para descansar e tentar
raciocinar novamente. Ainda se ouve algumas sirenes, mas estão longe. O
importante é que não se ouvia mais os gritos e nem aquele lobo
assassino. Abro o portão devagar e de maneira silenciosa. A rua está
escura e deserta. Há iluminação somente em três postes... Um deles bem
em frente ao bar do Celso. Talvez desse uma parada lá para tentar
descobrir algo na televisão ou talvez fosse melhor ir direto pra casa e
contar tudo a Lúcia. Começo a andar acelerado em direção a minha casa. A
escuridão e o silêncio são assustadores. Paro de caminhar quando escuto
algo passar correndo atrás de mim. Olho para todos os lados e não vejo
nada. Aquilo me paralisa... Congela-me. Não há nada ali. Apenas a
escuridão e eu. Volto a caminhar, o barulho continua... Acelero o passo e
o barulho aumenta de maneira assustadora. Paro e enxergo um vulto se
escondendo entre as árvores. Pode ser um cachorro ou um gato. Pode ser
apenas minha imaginação pregando uma peça na escuridão. Caminho em
direção àquelas árvores para tentar descobrir o que é aquele vulto e por
fim ao meu pânico. O barulho não é mais de passos e sim da respiração
daquele animal... Meu coração dispara. Corro em direção a minha casa. O
barulho continua me perseguindo e ficando cada vez mais perto. Vejo
vultos e sombras de monstros por todo o lado. De longe enxergo a minha
casa. Antes de pular para o pátio tiro as chaves do bolso. O barulho
continua apavorante. Os vultos me cercam. Entro em casa e tranco a
porta. O barulho da respiração daquele monstro ainda é forte. Está tudo
escuro. Chamo por Lúcia, mas ela não responde. Atravesso a sala vendo
sombras apavorantes pela parede. Fico com medo de acender a luz e dar de
cara com o monstro de verdade. A porta de nosso quarto está fechada...
Lúcia raramente a tranca. Abro-a devagar e silenciosamente. Encontro
Lúcia deitada na cama cercada por vultos e monstros. Sento ao seu lado e
tento ligar o abajur. Minhas mãos tremem... Aquelas sombras malignas
aumentam na escuridão. Finalmente me controlo e acendo o maldito abajur.
A luz faz todos os vultos e monstros desaparecerem. Ela também acorda
Lúcia que diz a coisa mais doce que ouvi durante todo o dia:
- Deixei a janta no forno.
Agradeço
e vou até a cozinha. Procuro acender todas as lâmpadas que encontro no
caminho. As sombras vão desaparecendo na medida que vou iluminando a
casa. Tiro um prato de comida de dentro do forno e coloco sobre a
mesa... A fome não vem. Vou até a sala e ligo o rádio para saber de
alguma coisa... Em poucos segundos tudo que presenciei era noticiado.
Aquele lobo teria atacado treze pessoas até ser morto no bairro
Cruzeiro. Bem longe da minha casa. Desligo o rádio e guardo o prato
novamente dentro do forno. Volto para o quarto e deito ao lado de Lúcia.
Não há mais vultos e aquele barulho vindo da rua está tão baixo que não
incomoda mais. Lá fora apenas o vento, as árvores e alguns carros...
Mais nada. E isso é o suficiente para me fazer dormir.
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